quinta-feira, março 31, 2005

Sobre as próprias pegadas

Entenda o esquecimento como a introdução, lenta e voluntária, de um prego sob a própria unha. É caminhar de volta sobre os próprios passos dados numa praia, apagando as marcas nessa dança encantada e invertida. É escolher a sobrevivência das memórias, dar as costas, por fim, a uma porta trancada. É desconhecer todas as maravilhosas paisagens das trilhas não percorridas.

terça-feira, março 29, 2005

Conjuração

Na folha branca da sua nuca eu desenhei símbolos de encantamento. Uma estrela de cinco pontas; uma ave sem nome, que costuma repousar sobre as muralhas terríveis em torno do trono de deus; uma linha retorcida e um ponto esticado, que representam a única vela a ser acesa na última escuridão do mundo; e a doce e invísivel marca de um beijo que, eu cheguei a pensar, nunca secaria.

segunda-feira, março 21, 2005

Anotações tiradas de um livro de magia

De você componho um inventário. Um sorriso que demorou horas para brotar; um olhar lançado como uma âncora através de uma janela de carro; a mão medindo a textura de um lençol branco; a dor mal disfarçada pelo silêncio dos olhos; a fina areia branca salpicada aos pés, numa foz de rio; os cabelos sempre arranjados numa encantadora e dolosa bagunça. Um estranho modo de contar uma vida. Um amor como um caderno de recortes. Folheio-o como um imperador aguarda, à brisa de um espelho d'água, a conclusão dos seus dias. Todo o império ao redor ganhou a importância de um brinquedo jogado numa caixa de papelão.

quinta-feira, março 17, 2005

Instrumentação

Haja rodar nesse mundo meio-penumbra. No sonho, eu percorro o Globo a passos de sete léguas, sempre mirando o Leste. Não há pausa de descanso, pois o desmantelo está sempre nos meus calcanhares, bafejando a minha nuca, e eu tento manter-me sob a luz do dia.

Até que uma saudade, uma água pesada na qual estou imerso desde o meu nascimento, arrasta-lhe para dentro do meu mundo dormido e interrompo a minha corrida para novamente respirar o seu hálito quase esquecido. Eu toco sua face, como se espalhasse areia, e você se desfaz. E todo o redor mergulha numa madrugada de nanquim.

E, se tivesse voz, você diria, entre o consolo e a repreensão: "É sempre noite em algum lugar".

terça-feira, março 15, 2005

lêdo

A menina das doze horas, areia entre os dedos, a medida do juízo, a desmedida, a doida. Ela é um passarinho, olhando esquisito para o que não entende. O mundo lhe é uma coisa nova, até sempre.

Estrela é um pedaço ínfimo de céu, um furo numa manta. Falta um rosto para compor a paisagem, e dar à noite seu domínio. Ela é uma procuradora de inícios.

Para onde vai a fumaça dos nossos cigarros? Depositada, como fantasmas, no amplo limbo das coisas que tentam superar sua findada existência, a fumaça dos cigarros são os números de deus.

segunda-feira, março 07, 2005

Uma forma de despedida

Esta é uma despedida. É um aceno de quem vai ganhar distância o modo que o olho agora, sabendo o que você ainda não sabe, a minha saída do seu mundo. Ao beijá-lo, estou colhendo de volta todas as palavras que depositei em você, e tecendo numa língua estranha um epitáfio.

Esta é uma despedida e, se você soubesse ler a escrita da pressão do meu corpo sobre o seu, saberia disso. Dispo-me como se me vestisse, acaricio seu rosto como se fosse erigido de areia, retirando a camada frágil do amor que ali acumulei. Enquanto você procura significados na minha pele e engana-se, bebendo dos meus cheiros, eu seguro a sua cabeça e, lenta e pesarosamente, introduzo na sua nuca o punhal da minha ausência.

Esta é uma despedida e, quando escutar, no seu ouvido beijado com afeto, o meu último suspiro, já terei ido embora das terras novamente secas do seu espírito.