terça-feira, junho 28, 2005

A rede do trapezista

Os olhos de meu pai eram pistas de adivinhação. Eram como o mar que se incha do escuro do céu antes da chuva. De verdes, tornavam-se azuis na euforia e fechavam-se num cinza inconfidente quando a vida lhe comia por dentro. Eram a sua concessão máxima para falar-nos dos lagos que lhe transbordavam. Um dia, o vento que não soprava da sua boca e o rio que lhe corria subterrâneo explodiram-lhe o coração e o estômago. Meu pai pequeno, diante do mundo e sua bocarra, secou para dentro, engolindo lembranças, formigas carnívoras urdindo cavernas nas suas entranhas. Já era do outro mundo antes mesmo de deixar este. Já estava no outro lado, antes de pisar a estrada.

Um sonho bom é sonhar-lhe os olhos azuis, o sorriso que era a rede sob o meu trapézio, o vento assanhando-lhe os cabelos que não herdei. Herdei, sim, os seus lagos e suas ventanias e com eles enfeito a paisagem do nosso reencontro. No dia em que sua vista refletirá novamente uma redoma sem nuvens. Meu pai gigante como eu me lembro, as mãos novamente a me levantarem do chão. Nós dois sonhados por um terceiro, vivos pela mesma saudade.

quinta-feira, junho 23, 2005

Instruções para atravessar paredes

Esta casa foi erguida sobre a promessa de um sorriso, sobre flâmulas e confetes que adivinhavam o desfile do bom futuro. Estamos ainda aqui, os olhos vidrados no horizonte desta avenida, aguardando ansiosos o primeiro carro do cortejo.

Nenhuma outra casa acorda na cauda da noite como esta. Enquanto todos dormem, abraçados às suas inconfissões, ela afunda na terra, frações imperceptíveis engolidas. O chão avançando paciente sobre a família que ainda será sua.

Na madrugada ela revela os seus sons, range segredos, estala profecias. Beija as testas dos dormentes, perdoando-os por suas inocências e perversidades. O futuro não vem agora. Talvez chegue quando os próximos viventes caminharem desavisados sobre o nosso telhado soterrado. Talvez assim se cumpra o destino da família, herança dos seus mortos, gravado em argamassa, nas paredes desta caixa.

domingo, junho 19, 2005

Borrow somebody´s dreams 'till tomorrow 3

É uma catedral inacabada, com as portas dolorosamente fechadas. Panos e plásticos semitransparentes cobrem fileiras de bancos e andaimes nas paredes. Meu andar pelo chão conjurado ecoa um exército de passos nas paredes cinzas, nos rostos sempre surpresos dos santos. No centro do teto, folhas de um ouro alaranjado são projetadas por um lago em fogo no pé do altar. Foi aqui que uma vez acendi um assoalho de velas para você, onde imprimi a marca dos joelhos num piso opaco, onde, deitado de bruços, os braços estendidos em cruz, compus uma reza em simetria, ornando cada tônica, dourando suas pausas, estalando seus fonemas, para depois recitá-la em linha e ao inverso, num perfeito palíndromo, uma esfera imaculada.

Foi ainda aqui que a minha oração incendiou-se até o pó das cinzas, quando vontade do vento virou. Minhas palavras ardendo-me uma a uma nos lábios, enquanto pronunciava-as pela última vez, queimando-me a garganta em despedida. Minha ladainha perfeita, a arquitetura do nome de Deus, que eu escreveria somente para os seus olhos lerem. Foi aqui que se desfez a coisa mais pura que eu pude criar. Foi essa saudade que apagou as minhas velas e é ela que sustenta as colunas desta nave.

É nesta casa inabitada de orações que eu empilho bancos, oratórios, relicários, crucifixos, e a eles ateio o mesmo fogo. Avivando uma fogueira esfomeada, cujas chamas alcançarão o canto escuro entre os arcos que atravessam o teto, onde Deus protege o seu sorriso embolorado e sua barba perfeita. É o seu recinto que eu deixo e cujo adro procuro, a fim de ver arderem seus vitrais na noite das lápides.

quinta-feira, junho 16, 2005

Desta última manhã

Se um vento batesse minhas portas e janelas, se o dia lavasse meus corredores com uma luz tão intensa, que marcaria as cores de meus quadros e rodapés, e estes iluminassem a noite, na ausência das lâmpadas, se a graça de crianças numa corrida de bicicletas ventasse nas minhas barbas e lacrimejasse os meus olhos, não de um choro de quem ora para um lugar vazio, mas cobrindo minhas pupilas de um brilho de chegada, se o som de rádios AM, vencendo vidraças e fugindo das cozinhas nesta última manhã, entremeasse os cabelos que não tenho, convidando meu suspiro para dançar.

Como um dia pinçado das fileiras acumuladas nas minhas prateleiras, um dia limpo e vivo em seu brilho, lustrado e posto sobre a mesa para arder na noite, na madrugada fechada, de quietude morta, onde nenhum som pula os muros do quintal. Os grilos calam quando a visita indesejada se aproxima. Se eu compusesse novamente a pureza que criei e lancei ao céu sem volta, se pudesse outra vez preencher de barro a beleza dessa estátua inexistente, esculpindo-a num processo inverso, não me doeria tanto a madeira maciça desta porta batida às minhas costas e o silêncio que arranha o seu espelho como um cão apanhado de frio.

sexta-feira, junho 10, 2005

Um grito depois do medo

Começa com um grito que vem depois do medo. Às vezes tão agudo que poderia ser confundido com um assobio de uma janela num dia de agosto. Depois, o colchão sob mim some. E o piso. E a Terra. E o silêncio se aprofunda, com duas mãos fortes que não existem, comprimindo meus ouvidos. Eu fico assim, numa queda tão grande que deixa de ser queda, para ser apenas uma suspensão no vão sem horizontes. Então, de algum lugar de dentro ou de fora, começa o murmúrio. A princípio, tão suave que me pergunto se o estou ouvindo. Crescendo no volume, ele começa a ocupar o meu silêncio, como um rio preenchendo um copo de água. Concentrado, tento acordar - e o faço - mas estou de volta somente aos olhos, longe, ainda, do restante do corpo que se rebela aos meus comandos.

Pescoço, braços e pernas inertes, enquanto uma multidão invisível - homens, mulheres, crianças e outros - conversa em meu quarto. O quase morto que eu sou observa as vozes sem gentes, aos poucos despindo-se do pânico do contramundo, e passa a tentar pinçar, das milhares de palavras que colidem, um colóquio inteligível que seja. E tão interessado me encontro neste exercício de concentração, que apenas após alguns minutos percebo a muda figura de pé, ao lado da minha cama, quase no ponto cego da minha vista, observando-me com uma científica curiosidade

quinta-feira, junho 02, 2005

Aos amigos ausentes

Os copos cheios unidos em prece e lembrança. Que cada um de nós dê ao demônio o que lhe é merecido. E que o tempo retorça e que seja amanhã a hora do reencontro. Que nos encontremos plenos de nós mesmos, cotovelos sobre a mesa, relacionando as conquistas e as perdas. Olhos cansados, amigo, cheios de tanta estrada, tanto descaminho, tanto desmantelo, a expor os ventos soprados nos rostos, os beijos furtados, noites em claro, gritos calados. Trocaremos os saldos numa competição carinhosa. Uma saudade da inocência, um coração mais duro, uma alma mais pura. Desarmados, porque no descanso da taverna não se usa armaduras, nem elas existem entre nós, falaremos da noite escura, das bestas escondidas atrás das árvores, do sangue que nunca desgrudou das espadas, da companhia da morte que morava na boca de algumas mulheres. Beberemos o vinho e a cerveja, até transbordarmos os copos dos corpos, e caminharemos abraçados sob os postes, cantando canções que entoávamos quando o mundo era vasto e o espírito era imbatível. Seremos melhores, seremos mais fortes - embora mais tristes e os olhos um pouco mais opacos, é certo -, seremos o orgulho um do outro, porque teremos cumprido o destino - ora terrível, ora glorioso - que nos cabia. E gritaremos em desafio aos velhos deuses de rostos sombrios e carrancudos: "É o melhor que podem fazer?". O silêncio, como sempre, será a resposta.

Para o Galego.