terça-feira, agosto 30, 2005

Fronha da minha quietude

Eu dou-lhe a mão espalmada para conter a sua e é um caminho de volta que elas percorrem no ar. Os seus dedos sobre a minha vista e eu não sou mais o medo da visita fora do olho mágico, o homem que viu outro cair pela janela, o contrapé do mundo rodado. Eu sou um peito cheio do peso da sua cabeça, uma pálpebra em que se imprime um lábio, uma folha que roda no grito do dia, a janela que carrega em si o mundo inteiro. Eu sou o ar desenhando a música, o riso escapado, soluçado, do homem taciturno, um riso que escavou anos entre argila e rochas e areia até mostrar-se ao sol, um sachê de cheiro iluminando o guarda-roupa. E no espaço oco entre o meu espanto e a minha explosão, você redesenha as linhas da minha mão, e escolhe por mim a direção no caminho bifurcado.

domingo, agosto 21, 2005

Borrow somebody's dreams 'till tomorrow 6

Com aquele semblante de quem tudo sabe, inclusive tudo o que lhe foge do conhecimento, ele disse. "No princípio, deus não conseguiu criar nada, nem mesmo um grão de areia, nem mesmo a idéia de um grão de areia. Lançava as mãos, os dedos em garras à frente, mas nada nascia do seu gesto. Foi depois de uma eternidade - e para deus todo segundo é uma eternidade - que ele entendeu. Deus, então arquiteto de um barro inexistente, criou a palavra e com ela ergueu sua obra. Tudo o que pensava era o nome, bastava-lhe gritar a denominação e a coisa surgia por conta própria, o universo escapando-se dos próprios bolsos. Imagine, então, a ledice de uma outra eternidade, um deus sorridente, divertindo-se de criar e gritar nomes, espantando-se da concretude de sua própria criação."

"E pense, ainda, na solidão da primeira letra - a eternidade dentro do segundo, lembra? - que, por um tempo imensurável, a nada podia conceder nome ou corpo. Ela mesma um deus solitário, com um alarido interno, que era um universo à procura de uma forma."

domingo, agosto 14, 2005

O quarto escuro do amor dormido

O assassino entra no quarto guardando todos os ruídos nos bolsos, conservando o sono da mulher deitada. À beira da cama, ele estaca e a observa por uns instantes, tentando adivinhar-lhe os sonhos. Mas ela os guarda sob o travesseiro e ele se ressente do seu silêncio. De semblante cerrado, ele curva-se sobre a silhueta guardada sob o lençol. E faz o que veio fazer. / Ou era um quarto que não veria a manhã seguinte. Quadros, luminárias, cômoda, cortinas de olhos fechados, o teto que guardou um grito. Era um quarto com a mão sobre a boca quando o homem ergueu a mão sobre a cabeça, faca em preparo, e imaginou interromper um sonho sobre crianças e aviões. / Ou os olhos dele já eram amigos do escuro quando entrou no quarto, que já conhecia. Lembrou-se do cheiro da mulher deitada antes de senti-lo. Observou o rosto, única parte do corpo à mostra, mesmo que parcialmente. Um quarto cheio de um frio nervoso. Pensou em beijá-la, mas não queira que acordasse. Assim, em silêncio, fez uma oração que desviou-se numa declaração de amor mudo. Tentou encontrar-se dentro daquelas pálpebras que mal enxergava. Ao certificar-se de sua ausência, buscou a faca guardada em seu casaco. A lâmina virgem, perfeita, guardada para um ato de bênção. Levantou-a e, depois de uma hesitação imperceptível testou a insuficiente resistência da carne do peito do seu amor. / Ou o pretume dentro do quarto não lhe deixa perceber meus olhos minimamente abertos. Mas eu consigo vê-lo e completo com a lembrança os traços que o escuro apaga do seu rosto. Internamente, eu zombo do seu passo revestido de um cuidado caricatural. Envaideço-me com a sua contemplação, e lhe dedico uma ternura que não sentia há tempos. O seu silêncio me explica o que irá fazer, mas eu não movo nenhum músculo. Estou decidida a ver tudo, a acompanhá-lo até o fim, a receber sua raiva como um carinho. Mas, quando o metal em sua mão deixa refletir um brilho tímido, me escondo atrás das pálpebras e prendo nos pulmões o ar que me sairá pelo peito. / Ou ela é o rumor de uma corrente que me corre dentro, uma agonia latejada, o resíduo amargo da comida que me mantém vivo. Ela é o gatiho e o empecilho da minha lágrima. Ela é o óleo que me escorre da testa, a planta escondida no ovo da morte, a mordida de um câncer. Mata-me ser tão pleno dela e não habitar-lhe nem como uma imagem gasta na calha da memória. Ela é a causa da minha morte. Eu serei a dela. / Ou cinco beijos de metal no lado de dentro do seu coração, sendo o último permanente. Faca, tecido e carne unidos. Quem lhes discerniria um do outro?

quinta-feira, agosto 11, 2005

Chapéu no peito

Termina com um grito engolido no seu primeiro pulo, um soluço ácido. Termina com as nuvens fechando-se, transformando palco em cochia, a luz ardendo os olhos sentados, espantando a audiência. Termina com um menear de cabeça, o chapéu no peito, a solenidade patética do destino abortado. O futuro que errou o caminho dói como um canteiro careca de flores. Em algum lugar fora dele nós nos alcançamos, fora desse tempo que era meu e que se perdeu, o caminho não construiu um beco, os muros - altos como a azia de uma palavra não dita - não se fecharam sobre mim. Naquele outro lugar eu não presto visitas diárias a um túmulo, sobre o qual eu planto os meus segredos. As flores mais lindas da minha criação brilhando no silêncio.

terça-feira, agosto 09, 2005

Há um dia numa noite

Eu nem sempre fui de noite, nem sempre cobri o sol com as mãos e segui os desenhos das calçadas. Foi o meu presente o nervo mastigado, o mal entranhado, borbulhando o sangue, o verde sob a terra. Em algum ponto, eu passei a dormir do lado de fora, sob a minha janela, espreitando a fala das lâmpadas, dando de ninar à cidade. Um dia, talvez na sombra de uma falésia ou na morte de um rio, eu branqueei os cabelos da minha infância e afoguei um menino. Mas, há um sonho no qual eu me dispo dos anos, em que eu abro as mãos generosas da minha vista e recebo a luz, como um fantasma de sol num dia de roupas largas. Nele você dança sem gestos e pousa sobre mim, como já fez um dia, a pluma dos seus olhos, fronha da minha quietude.

domingo, agosto 07, 2005

Borrow somebody´s dreams ´till tomorrow 5 ou A Bailarina do Veneza

Folhas secas entram revoando em redemoinhos pela esquecida janela aberta. Sobre a escrivaninha, alguns poemas escritos à mão escorregam para o piso, impelidos pelo vento de agosto. Setembro nem começou e já é interminável. Lá fora, as árvores dançam e, se alguém passasse na rua nesse instante, perguntaria se não são elas que agitam o ar que agora beija o rosto do jovem de olhos fechados, deitado em sua cama. Aproximamo-nos dele. Olhamos por seus olhos que vêem o que não podemos chamar certamente de sonho.

Haniel vem por uma rua do centro. Mãos dadas a uma moça de amarelos e negros cabelos e olhos, seria chamada Circe. Olha-a e quase mesmo acredita que ela está ali. Como se não tivesse ido embora, em um dia que a lembrança insiste em esconder. Talvez até ela não tenha sido tão bonita como agora lhe parece.

Na verdade, ele sabe, ela era ainda mais bela. O andar tem fim. Chegam à frente do Cine Veneza. Circe corre à bilheteria. Haniel pensa a tarde e como parece com outra, de muito tempo atrás. De novo, a apagada lembrança. “Balas?” Soa uma voz em suas costas. Gira no pé direito e vê a bailarina, rosto maquiado branco, com ressaltados traços a lápis preto. Roupa colante num corpo esguio. Na altura da cintura, um tabuleiro de guloseimas, pendurado à nuca por uma correia. “Quer balas?”

“Haniel!” Circe chama, acenante, da entrada, agitando na mão os bilhetes. As pessoas entram devagar, parecem estranhas, como se já as tivesse visto. Ah... memória... Como se as visse por toda a vida. A voz aveludada da bailarina parece espalhar-se no ar. “Ela não é real, você sabe. Eu sou, de uma forma diferente, mas sou, agora mesmo a lembrança tremeluz em você.” ele olha de novo a menina loira. Como foi mesmo? Há tanto tempo...

Lembra que a namorou por quase um ano, depois de outro de devota admiração. Tudo em sua vida passava por ela, como um filtro, o fundo de uma piscina. Lembra que gostava de encostar em seu pescoço e ali ficar, por muito tempo sentindo o cheiro de flor que transpirava. Circe, um dia, disse acabado tudo. Que não era ele quem ela queria, que não se vissem mais. Ele insistiu, pelejou, mas estava decidida, concreta e não a abalou nem mesmo quando caiu menino aos seus pés. Cerrada em sua decisão, de onde quem sabe originada, ela irredutiu-se. Enfim, como que conformado disse “Vou me lembrar para sempre de você” Ao que a moça respondeu, dando-lhe as costas para nunca mais: “Eu espero que não”.

“Balas?”

Olha para baixo, não, não quer. Na porta da sala de projeção, a menina loira sumiu. “Ora, mas se você não quer, o que veio fazer no cinema? Assistir a um filme? Você já viu todos.” Onde ela está , quer saber. “Ela não existe, já falei. Ficou para trás como as outras pessoas. É uma outra lembrança que já de novo perde-se aí dentro. Vamos, aqui a mão.” O rapaz enxuga a vista e estica o braço. Um arrepio lhe relampeja o corpo quando sente os dedos frios e magros tocarem os seus. “Calma, agora podemos ir, está pronto?” Ele não sabe se está, mas faz que sim com a cabeça. Ela sorri docemente, e passa-lhe a outra mão nos cabelos lisos. E assim, Haniel desce a calçada com a bailarina do Veneza que vende balas de verdade.

Chuviscos entram pela janela, molhando o chão. O tempo parece que vai piorar, talvez chova muito nos próximos dias. Uma folha marrom entra rodopiando pelo quarto e interrompe sua trajetória pousando no peito do rapaz deitado. Sua mão solta de lado da cama toca o piso, dela escorre um líquido denso e vermelho formando uma poça, que vai aumentando de tamanho, prejudicando, de maneira irreversível, o caríssimo carpete bege.