terça-feira, outubro 18, 2005

Os moradores 5

O demônio familiar criou-se no cesto de roupas sujas, amamentando-se dos cheiros, humores, azedumes e segredos da família, sorvendo as mágoas ao morder as fibras dos tecidos, recebendo com mais e mais agrado a chuva de peças sobre o seu esconderijo. Depois tornou-se grande, espalhado para os corredores, treinando silvos de ventos e assobios delgados. Tornou-se especialista em imitar as vozes dos habitantes. Chamava por um filho com a voz da mãe, ou ensaiava o brado de um irmão, apenas para adivinhar segredos na tensão dos músculos dos pescoços de quem ouvia, medir resistências, pesar farpas cravadas sob a pele, traduzir impaciências. Depois fez-se ventríloquo, plantando palavras nas frases, na verdade recuperando verbos, adjetivos, locuções suprimidas. Usava-os como pequenas setas de zarabatana, pingando de um lento e perene veneno. Desatava a fala da garganta, mentia com um armorial de verdades.

Quantas vezes o exorcizamos, o demônio familiar? Quantas, nos prantos de hospital, num presente sem data, trazido da rua, num afago desnecessário no alto da cabeça, numa mesa farta de pão e cerveja, de vozes e risos soltos, plena de nós todos? Quando encontramos, num canto improvável da casa, como um ovo de páscoa esquecido, a liga que nos escreveu iguais e, por isso, opostos, o amor que dilui as nossas cascas? Mas o demônio volta ao seu berço - seu maior ardil, a espera - e volta a crescer em gotas, quando não mais reconhecemos nossas formas, bebendo a goles de embriaguez, os assassinatos diários da convivência.

terça-feira, outubro 11, 2005

Avistamento

É o céu vazando uma improbabilidade. Uma estrela girando, vestindo o preto caldo da noite, guiando uma dança com a inércia. É o halo em vermelho, azul e branco, um ponto de luzes espinhosas - um ouriço que fere brilho. E o que diz você, quando ele vem mostrar-se próximo e gigante, prenda vaidosa, um orgulho de braços espraiados que engloba o olho que a vê? E rasa o campo onde, estirado, esperavas o absurdo. E o que diz você quando a estrela que se exibe, cheia de si e seu espanto, escolhe a você e estende-lhe a mão num facho luminoso, convidando-o para o baile?