domingo, janeiro 29, 2006

Aniversário

Hoje eu acordaria o dia num abraço e depositaria a flor de um beijo no alto de sua cabeça. Hoje receberíamos o sol de bermudas. Hoje driblaríamos a eternidade e seus olhos seriam azuis para sempre. Hoje eu lhe improvisaria uma carta de gratidão e orgulho, cheia de uma saudade que eu já sentia antes do seu último dia, e você fingiria surpresa ao agradecer os presentes. Hoje você deixaria uma linha d'água sob os olhos - frouxo de choro que sempre foi -, mas seriam lágrimas sem peso, plenas de brilho. Hoje eu não mastigaria sozinho esse vão, esse espaço vazio entre os meus dedos, onde seus cabelos deveriam estar. Hoje eu não teria sonhado com a sua face cerrada, um homem vazado para fora de si mesmo, mudo, carregando sob os pés seu abismo particular. Hoje eu não sentaria rente a esse homem no sonho, frente a frente, os sombrios portadores de uma saudade ancestral.

sábado, janeiro 21, 2006

Os moradores 6

Começava com a casa dormida. A visão mordia o escuro. Um escuro granulado, um escuro que respirava bufando, soprando sobre os móveis, quadros e objetos. Então o olho desenhava no preto (ou o preto no olho). Abria as gavetas da cômoda, de onde rastejavam para fora pequenos pontos de patas articuladas, aranhas guardadas entre as culpas das roupas íntimas. Remodelava quadros, artista fértil, abrindo as pálpebras dos desenhados, movendo gestos nas mãos, atraindo personagens para fora de seus enquadramentos, os pés silenciosos pisando o chão do quarto. Então surgiam os rostos, emergindo das portas mal fechadas, nas quinas do teto, na luz indecisa da janela. Era então que ele entrava, o homem do corpo retangular, alto como as portas da casa da minha avó. Mangas de camisa arregaçadas, passos regulares, marcados e firmes como um tambor mortuário, levava sobre o pescoço uma ausência gritante e, sob o braço esquerdo arqueado, a cabeça que dormia. Aproximava-se da minha cama (eu podia sentir o desconforto daqueles que habitavam sob ela) e sua mão direita tateava o ar viscoço, em direção ao travesseiro onde minha nuca cravava seu formigamento.

domingo, janeiro 08, 2006

O pequeno homem que não estava lá 3

Meu pai deu nome aos caminhos sombreados. Chamou cada pedra pelo que pedia a dureza do seu corte. Despesava a areia que lhe escorria pela mão, gastava as palmas ao abençoar tudo com seu toque ateu. Já eu lustro um sonho de pureza, ando no tempo que apressou-se em amadurecer, aguardo nas palavras. Meço os passos para não pisar as frestas das calçadas. Eu tenho um sono imperfeito e, fora dele, minhas mãos não sustentam o real. A solidão da família caiu-me junto ao sobrenome.