terça-feira, junho 08, 2010

Duas jóias mudas

Sonhei que, por um desses motivos dos quais a lógica dos sonhos não se ocupa, tinha eu duas focas hospedadas no banheiro da casa da minha mãe. Não apenas no banheiro da casa da minha mãe, mas no banheiro do andar térreo, onde tomei banho durante toda a minha infância, antes que a reforma daquele que há no primeiro andar fosse concluída, ou antes que eu perdesse a teimosia infantil contra o banho frio, que hoje, afinal, eu prefiro ao do chuveiro elétrico, que só havia no banheiro do andar térreo, da casa da minha mãe, onde as duas focas habitavam por ocasião do meu sonho.

Cabe acrescentar que, por uma dessas certezas das quais a lógica dos sonhos abre mão de comprovações empíricas, as duas focas eram irmãs. O que parecia estranho, ou extremamente evidente, pois uma delas era completamente branca, a não ser pelos bovinos olhos negros, e, a outra, totalmente negra, inclusive pelos olhos. Os quais, agora reconheço, evidenciavam o parentesco.

Não ignorava o dualismo que, mesmo no sonho, eu prontamente julgava clichê. Irmã negra, irmã branca, irmãos opostos, yin e yang, o lado mal e o lado bom, qualquer que seja a cor má e qualquer que seja a cor boa. E, ah, se pudéssemos identificar a maldade assim, pelo espectro de luz que ela ocupa, ah, se pudéssemos simplificar a questão, num recurso ainda mais imediato que o estúpido critério que nos faz acreditar que existem mesmo maldade e bondade, habitando espaços próprios, antagônicos, acreditar que seriam mesmo duas coisas diferentes.

A foca negra era a mais arredia, escondendo-se sempre atrás da irmã, no canto do box. Ambas eram pequenas, do tamanho de um gato grande, o que me fazia deduzir – nos sonhos, dedução é quase sempre uma verdade universal – que eram filhotes. Seres encantadores, as focas, ou pelo menos eram estas do sonho, e me pegava a admirar a sua aerodinâmica, a maneira como o corpo ocupava um único conjunto de linhas minimalistas, cabeça, corpo e patas nadadeiras resultando de um mesmo traço ligeiro e harmônico. A foca é uma peça só.

Encantado desta beleza, não dei olhos ao fato de que sofriam. Sendo as focas criaturas nascidas para águas e ares gelados, envoltas num casaco de grosso pelo ensebado, subtomados de uma grossa camada de pele, que encerra protetores centímetros de gordura isolante, o box do banheiro, na casa de minha mãe na cidade tropical na faixa mediana e equatorial que divide o mundo em dois hemisférios, era uma câmara bafejante a cozinhá-las.

Penalizado daqueles olhos negros que ardiam da inclemência dos trópicos, abri o chuveiro, a mão apressada a girar o gelo da torneira. Que alívio sentir o alívio delas enquanto os finos jatos de água despejavam-se sobre os animais, as bocas abertas, línguas para fora, respirando rápido para reequilibrar a temperatura corporal, sonhando a memória do frio acolhedor de praias glaciais. Os corpos, monoblocos, brilhando, reluzindo.

O nível da água subiu rapidamente e elas agitavam as patas, testando a mobilidade naquela ainda pouca água. Os pequenos dentes, todos caninos, à mostra como num sorriso, uma alegria que os olhos bovinos não manifestavam. À medida em que crescia o volume desse mar, ele começou a girar, no sentido anti-horário, como manda o costume no hemisfério meridional, em torno do ralo.

As focas, sacolejadas pela força das águas começaram a rolar uma sobre a outra, duas jóias, uma branca, outra negra, a se chocar como gemas mudas. Breve, deslizavam sobre e sob a lâmina d’água, buscavam impulso sob a superfície e superavam-se em saltos ornamentais. Giravam em velocidade cada vez maior, resvalando as paredes do box, desenhando círculos dentro do quadrado. E então, desenhando espirais, seguindo uma à outra, aproximavam-se do vórtice daquela agitação.

Num descuido da contemplação é que percebi o que aconteceria. Apressei-me a alcançar o registro e a desligá-lo. Mas isso só fez acelerar o giro da água em torno de si mesma, e os dois animais, as duas jóias, as duas irmãs, apressaram-se em fugir, desaparecendo naquele maelstrom caseiro, até que restasse apenas aquela casinha de banho, tão seca quanto principiou.

E eu, invejando o caminho que, acreditava, as levaria ao mar, lamentava a sua liberdade, e entristecia. Antes morressem desidratadas sob meus olhos. Duas jóias opostas que murchassem em passas, para o meu deleite pessoal.