Olhe o desenho de uma hora fechada em si mesma. O menor dos ponteiros interrompendo o seu trabalho para observar as revoluções do companheiro maior, há voltas sem conta. É uma estrada em círculo. Uma água parada tomada de um braço de rio. Nesse espelho se reproduz translúcido o rosto do pescador, uma aparição ondulante. Trancado dentro do momento, ele captura um peixe em forma e cor de faca, erguendo um punho fechado e um sorriso, em sincero ato de auto-aprovação, para devolver imediatamente a presa ao seu habitat, mal contendo a excitação na espera de colhê-la novamente.
Vento nenhum move as folhagens às suas costas. Animal curioso algum vem ver o seu sucesso e seu fracasso repetidos.
terça-feira, maio 31, 2005
quarta-feira, maio 25, 2005
borrow somebody's dream 2
Era a noite do dia em que a avó se encantara. Uma partida tranqüila, contida. Uma morte que chegou invisível. A avó saíra da vida como alguém se retira cedo de uma festa sem querer magoar o anfitrião. Talvez tenha tentado não me magoar. A mim, que vigiava seu último instante. Foi-se entre um baixar e subir de pálpebras, ou durante uma distração na janela, ou após o ranger de um assoalho às minhas costas.
Tanto que sua morte não me chegou quando a vi, enfim, imóvel, nem quando a tomaram do leito. Nem fui tocado pelos pêsames sempre óbvios ao lado do caixão, nem pela sua descida através da boca faminta da terra. Não me ensejou nenhum aprendizado, o silêncio cercado pela família na sala-de-estar, ao fim de tudo.
Ela morreu. Isto eu só entendi sozinho na fraca luz da rua que chegava pela janela, abandonado, sem saber por quê, pelos outros viventes daquela casa. Quando uma abelha noturna atravessou a sala em piruetas, oscilando num vôo de iniciante. Quando ela cruzou o ar à minha frente e pousou no braço direito do assento cativo da avó. Quando, sob o peso irrelevante do inseto, a cadeira pôs-se a balançar.
Tanto que sua morte não me chegou quando a vi, enfim, imóvel, nem quando a tomaram do leito. Nem fui tocado pelos pêsames sempre óbvios ao lado do caixão, nem pela sua descida através da boca faminta da terra. Não me ensejou nenhum aprendizado, o silêncio cercado pela família na sala-de-estar, ao fim de tudo.
Ela morreu. Isto eu só entendi sozinho na fraca luz da rua que chegava pela janela, abandonado, sem saber por quê, pelos outros viventes daquela casa. Quando uma abelha noturna atravessou a sala em piruetas, oscilando num vôo de iniciante. Quando ela cruzou o ar à minha frente e pousou no braço direito do assento cativo da avó. Quando, sob o peso irrelevante do inseto, a cadeira pôs-se a balançar.
sexta-feira, maio 20, 2005
A sentinela no exílio
Torne-se o retrato de um momento, uma pintura espatulada, perfeita de cores tão diversas. Pendure-se como um quadro - ou uma janela - debruçado sobre a minha cama, abençoando meu sono por todas as noites. Não me olhando diretamente, como o pudor ou o segredo a impedem, mas desviando o olhar para um ponto inexistente, hesitando a cada frase, deixando escapar palavras em voz baixa, para depois escondê-las. Para onde se varre o que já foi dito?
Alimento-me das palavras que você não quis dizer, do que transbordou da sua prudência. Eu, que sobrevivo três vidas antes de cada segundo, recolho esses transbordos como os fios e sonhos que lhe caem da cabeça, como as lágrimas que lhe vertem para dentro. Eu sou o senhor do que você guarda, de suas muralhas erguidas em pedra intransponível, dos seus portões levadiços. Eu habito o fosso em torno de você. Uma sentinela exilada, um dragão domesticado.
Faça-se o crucifixo da minha hora morta, velando-me e amaldiçoando. Transforme-se na imagem gravada a escopo no fundo do meu olho, na ponta dos meus dedos, ventando entre os pelos do meu nariz. Um fantasma intangível para sempre ser olhado.
E eu percorrerei os dias sempre armado da minha estupefação. Uma criança guiada pela mão de quem não está mais à frente.
Alimento-me das palavras que você não quis dizer, do que transbordou da sua prudência. Eu, que sobrevivo três vidas antes de cada segundo, recolho esses transbordos como os fios e sonhos que lhe caem da cabeça, como as lágrimas que lhe vertem para dentro. Eu sou o senhor do que você guarda, de suas muralhas erguidas em pedra intransponível, dos seus portões levadiços. Eu habito o fosso em torno de você. Uma sentinela exilada, um dragão domesticado.
Faça-se o crucifixo da minha hora morta, velando-me e amaldiçoando. Transforme-se na imagem gravada a escopo no fundo do meu olho, na ponta dos meus dedos, ventando entre os pelos do meu nariz. Um fantasma intangível para sempre ser olhado.
E eu percorrerei os dias sempre armado da minha estupefação. Uma criança guiada pela mão de quem não está mais à frente.
sexta-feira, maio 13, 2005
A visita
Não sei que obrigação mórbida me empurra para dentro do quarto. Dentro dele, quatro velas grossas, depositadas em cada um dos quatro cantos invocam os seis fantasmas que ali estão, de pé, voltados contra a parede branca. Cada qual, uma fatia do tempo, uma palavra calada, uma esquina dobrada há anos, um membro da família. É o meu receio, esse que escorre debaixo das minhas unhas num suor corrente, que os impede de voltarem as faces para a porta onde estaco. Diz o menor, de calças curtas e cabelo engomado, ao lado da velha de cabelo assanhado: "Que tanto lhe angustia ver um de nossos rostos? Que temor é esse que me segura pelos braços? O que você tanto não quer ver?".
"O tempo descascado na sua face. A trajetória da morte. O avesso da minha esperança", arrisco eu.
"E qual desses você já não adivinhou ao olhar-se no próprio espelho à perda de contas, parente?", responde a criança.
Vejo um relance de sua orelha, na luz de vela que cambaleia. A linha do pescoço perdida na gola apertada e bem arrumada. Em que joelho da memória dos meus antepassados aquela voz permanece conhecida? "Mostre-se então", eu peço, a mão apoiada no vão da porta, o pé recuado em alerta.
Como se adivinha um sorriso através de uma nuca? "Não agora. A sua hora de nos ver não deve demorar", diz o menino de um passado antes do meu.
O esguio calvo de paletó, na outra ponta da parede levanta e desce a mão, como se espantasse uma memória insistente do ar ao lado, e o vento que produz apaga as quatro velas. Eu sou devorado por trevas e contenho no plexo solar um grito que recebi de herança.
"O tempo descascado na sua face. A trajetória da morte. O avesso da minha esperança", arrisco eu.
"E qual desses você já não adivinhou ao olhar-se no próprio espelho à perda de contas, parente?", responde a criança.
Vejo um relance de sua orelha, na luz de vela que cambaleia. A linha do pescoço perdida na gola apertada e bem arrumada. Em que joelho da memória dos meus antepassados aquela voz permanece conhecida? "Mostre-se então", eu peço, a mão apoiada no vão da porta, o pé recuado em alerta.
Como se adivinha um sorriso através de uma nuca? "Não agora. A sua hora de nos ver não deve demorar", diz o menino de um passado antes do meu.
O esguio calvo de paletó, na outra ponta da parede levanta e desce a mão, como se espantasse uma memória insistente do ar ao lado, e o vento que produz apaga as quatro velas. Eu sou devorado por trevas e contenho no plexo solar um grito que recebi de herança.
domingo, maio 08, 2005
O dom
Meu tempo terá panos azuis ao fundo, um ar amarelado de fotos vetustas, uma certeza pétrea do alcançado e a levidade dos bons ventos. E eu terei a sabedoria daquele que, por eras, debruçou-se a ler num quarto escuro. Trarei uma praia branca em cada bolso e um desinteresse amoroso pelas coisas do mundo. E você terá o sinal. Trará em si a minha fleuma e o controle que eu queria ter. Será, a um tempo, cama e acalanto. Tomará o meu rosto em suas mãos, como se faz com a água de um riacho. E saberá, pelos olhos que pôr em mim, de todo o sentido que eu quero que saiba. E dirá que tudo é bom e que nada é mais.
domingo, maio 01, 2005
Meu sobressalto
O que você não diz eu recolho das frestas entre as suas palavras. Entre você e eu mora a minha perplexidade. Eu me assombro dos seus silêncios prolongados, do seu instante congelado, do meu ar suspenso. O que você não diz é um vulto que atravessa uma porta de uma casa vazia, uma conversa sussurrada entre parentes mortos, um rosto na janela. Meu sobressalto, minha antoiança. Um dedo que percorre a extensão da minha espinha. Eu me espanto de você, como alguém olha uma estátua que, de repente, ergue as pálpebras, mostrando os olhos brancos.
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