quinta-feira, dezembro 13, 2007

Roca

Não parecia um sonho até que ela cravou a agulha no dedo descoberto. Uma pequena língua vermelha exibiu-se na ponta do indicador enrugado. Podia jurar - revistou a memória e encontrou - que havia posto o dedal. Mas o copinho de metal permanecia sobre a cômoda, ao lado do jarro azul que guardava as...

... como se chamavam aquelas flores? Eram aquelas que cresciam atrás daquela igreja aonde ia na infância. Qual o santo? Eram aquelas que ele tinha-lhe oferecido naquela noite em a chamou para serem dois e um só. Qual era o nome dele? Olhou na estante o porta-foto que guardava o rosto do estranho. Impresso em duas cores sem nome, vestia um uniforme que não saberia dizer se do exército, da marinha ou...

... qual o outro? Sentiu-se, súbito, como o nadador submerso por uma onda e que constata, entre o pânico e a asfixia, não saber para que lado fica a superfície. Do susto, alçou os pés do chão e a cadeira pôs-se a balançar. Quadro, prateleira, teto/ Teto, prateleira, quadro/ Quadro, prateleira, .../ ..., prateleira, .../ ..., ..., ...

... qual o nome da coisa? Nada lhe era familiar. Pior, não conseguia pensar em algo que o fosse. Era pousar a vista sobre um, para apagar-lhe o nome, a experiência, a pre-existência. Uma fada que aponta sua varinha de...

... como se chama esquecer tudo? Esquecer as formas, o cheiro, o sentimento, o nome Sentimento. Como se chama ser uma criança no caminho inverso, tudo fazendo-se novidade, mas esquecendo do que é encontrar o novo? Como se chama o mergulho num mundo onde as coisas se despem da história que as pessoas lhe dão, onde as lâmpadas vão se apagar em fila para formar um escuro homiziado? Como...

...

Olhou o dedo, o sangue que hesitava em escorrer e, num reflexo que não sabia de onde vinha, levou-o à boca. Pensou estar em um famoso conto de fadas, cujo nome talvez tivesse ouvido, num dia que não aconteceu.

quinta-feira, novembro 22, 2007

O que nos é permitido

Meu filho esconde-se atrás do espelho da cama, mas é denunciado pelo chapéu pontiagudo feito com os classificados do dia. Acuso sua toca, de onde ele dispara, orgulhosa espada de plástico vermelho em punho.

Em guarda.

A facilidade com que me esquivo de seus golpes e o sobrepujo, lançando-o delicadamente sobre a cama não o embaraça. Sei o que pensa: quem derrota tão perfeito soldado, pode combater facilmente toda a tirania e vileza do mundo. Ao ser batido, ele sente-se seguro. Sinto-me gigante ao me ver assim em seus olhos.

Penso que para isso os pais geram descendências: para serem os gigantes que cultivaram na infância. Porque ser homem não é suficiente (que surpresa perceber que nem isso bem somos). Temos filhos para que eles nos façam os homens que um dia planejamos ser. Nossos filhos pactuam nossas mentiras e nós as deles.

Beijo sua barriga, fábrica de risos. E não deixo de imaginar seu rosto quando for um adulto mentiroso como eu. Quero reconfortá-lo desde já, dizer que somos o que nos é permitido, nem mais, nem menos.

Ou outras demais mentiras agradáveis.

E me surpreendo acalentado pela terceira grande mentira: a de que ele sim, será o gigante que eu finjo ser. Enquanto sua espada me atinge mortalmente, entre o braço e a lateral do corpo, e eu sucumbo com maneirismos teatrais.

Meu soldado perfeito me derrota, e agora eu sou seu filho. Olho-o com reverência e idolatria. Calculo o dia em que ele vai me redimir.