quarta-feira, dezembro 10, 2008

Café da tarde

Eu vendo doces tristes, ela disse, e apontou para a mulher que, num canto do café, dividia a mesa com algo que se indecidia entre um sorvete colegial e um capuccino. Ela levava colheradas mínimas à boca e as depositava na ponta da língua, retardando a sua chegada às papilas anteriores, talhadas para recolher o sabor. Brincava de tortura com o amor delas pela doçura, apenas para aumentar a alegria do cérebro em encontrar o açúcar.

Ela sorriu para baixo, alisando o balcão de vidro como quem alisa um metro de seda pura, engraçando-se da idéia de alguém que, em público, fazia sexo com a sua comida. E interrompeu o sorriso com a nem tão súbita percepção de que essa era uma solidão doída e despida, a mulher que só amava o seu chocolate gelado.

Eu vendo doces tristes, ela disse, assertindo com a frase, internamente. Este é um café aonde as pessoas vêm sozinhas, e tentam parar o tempo, e tentam encontrar o tempo dentro do tempo, o tempo onde o vai-e-volta da rua, das calçadas, tem destino e partida, onde as muitas vozes das muitas muitas pessoas não se mistura com os motores à explosão, os arrotos dos escapamentos, a música gasguita dos carrinhos de CDs falsificados, o olor das valetas e os restos de promessas caducas, formando a poluição que redoma o mundo. Aqui, elas compram vinte minutos do silêncio do mundo. Aqui, eu vendo o ópio da boca. Mas, o sangue renovado desse açúcar, eu lhes devolvo a um mundo ainda mais azedo. Aqui se vem para saber que se é triste.

Ela enxugava as mãos no avental, ocupada do senhor que despejava o conteúdo de dois envelopes num espresso esfumaçante, da moça de tênis de lona e rabo-de-cavalo semidesfeito que evitava morder o envólucro plástico de uma trufa, do homem que avançava sobre um pudim de leite, enquanto lia um jornal de três dias atrás.

Eu vendo doces tristes, ela disse, medindo o abismo de cada um pelo tanto que cabe em suas taças.

segunda-feira, março 31, 2008

A data na lápide

Há uma rocha depositada sobre o meu túmulo. Tão imensa, que encobre meu nome na lápide, e, mais importante, a data do meu passamento. Sinto sentada sobre o meu peito a sua imobilidade obesa, poço escuro do meu fôlego. Ela impede que o corpo que eu serei contrarie as caldas do rio, que eu inverta o caminho, que minha mão decomposta derrote verme, solo e raízes, e erga-se garra sobre a grama.

Há um rosto que me encara, um centímetro fora do meu campo de visão. Tem feições em pedra e ira, olhos que espetam minha têmpora e que nunca se permitem piscar. Tem a boca talhada em agouro de sorriso, um sorriso que não se ergue pelas pontas dos lábios, que não contagia bochechas ou sobrancelhas, que celebra profecias trágicas. Ele impede que a luz difusa complete o meu rosto. Sempre a luz direta, sempre um lado em sombra. Ele impede que meu sorriso retenha um chiado lamentoso, que minha alegria ande livre de lodos nos contornos, que eu desapareça soluços de minhas gargalhadas.

Há uma cidade que nunca muda nos meus sonhos. Ela é plena de ruas desertas, fachadas cerradas de lojas, ladeiras ingalgáveis que se erguem para o céu. Ela tem homens que moram em buracos, cães que ladram invisíveis em jardins escuros, procissões de saudades dos mortos, estradas que caem no rio, praias azuis no meio do lixo. Ela impede que eu me sinta acolhido em qualquer lugar, que eu não me descubra estrangeiro, mesmo na casa de meus pais. Ela impede que eu sonhe em ganhar o mundo em viagens. Pois a minha cidade não tem rotas de fuga. Pois há um lugar de onde eu venho, de onde nunca saí, e aonde vocês não podem nunca chegar.

quinta-feira, março 06, 2008

Cama de pregos

O céu aberto me expande.
Estica meus braços e pernas, cardinais, que se firmam em horizontes,
tomam-se por olhos.

O céu aberto me anela,
rarefeito como uma gota de sangue em um copo,
que perde seu rubor
para completar a água com o gosto metálico da morte.

O céu aberto me suspende,
alça-me pelos ombros da camisa como um sorriso,
devolve-me o vazio a que meus pés pertencem.

O céu aberto não me contém, cabe em mim como todos os dias dos meus antepassados, as veias saltadas da sua labuta, os cacos cortantes da sua loucura, o rio perene da sua tristeza, a cama de pregos da sua beleza.


segunda-feira, janeiro 07, 2008

O passo para fora

Tinha culpa por ter as costas em gravetos que, ao sustentar o peso do globo terrestre, estalavam em alarme? Culpa por se prender mais do que os outros ao lodo do mundo? Por ter as mãos amarradas da hesitação e a voz que aterrava atrasada à boca, com o pouco fôlego de um maratonista a quem não se estende mais a fita de chegada? Alguém lhe apontaria o dedo, balançando em reprovação a cabeça, por trazer consigo um espelho mais manchado que os dos outros, vendo apenas um caco de si, quando por si procurava? Quem lhe atiraria ao rosto piedade ou repreensão pelo passo dado para fora, por largar esse cortejo obstinado, que não se queda à irresolução, por comer da farinha da morte? Quem dessas belas criaturas o condenaria por não querer participar desse grande plano do deus das coisas perfeitas?