sábado, novembro 27, 2004

O mundo calado

Um barulho surdo, lá, longe, alavanca-me do sono. Um chiado, como um passo arrastado soando no corredor da casa sem ninguém, levanta-me da cama.

De pé, a mão na maçaneta, eu me detenho. Com a porta fechada, lá fora é um mundo em movimento, de seres e não seres que trafegam. Lá fora é um limbo espalhado, é um tempo esticado. Aberta a porta, seria a redundância irritante de uma casa vazia.

quinta-feira, setembro 30, 2004

Uma casca de noz

Ponha os olhos sobre mim. Para que eu não me desprenda, numa distração momentânea. Para que eu não ganhe as alturas. Enquanto você me olha, eu me sinto pertencido e o chamamento de uma singularidade nua, a anos-luz, continua um convite irrespondido.

quinta-feira, setembro 02, 2004

E eu sou o filho do homem morto

Um anjo mortuário, suas palmas suaves. Cabe-lhe prolongar o anúncio da última notícia. A doce informação que me dará sentido. Sua voz como o vento balançando árvores fora da minha janela, como alguém que fala durante o sono, como a sentença que se ouve ainda nem bem dormido...

sábado, agosto 21, 2004

Espelhando o céu.

O rio do meu pai tornou-se lago. Sonhos profundos despencaram de seus cabelos. Catei-os quase todos e os guardei nos bolsos para enfeitar os meus últimos dias.

terça-feira, agosto 10, 2004

Desaceleração

De uma pisada o tempo chegou aqui. Agora, é só um passo preguiçoso. O tempo agora é um nó.

Inglório procurar o tempo quando era um rio corrente.

Eu tento e a vista recua, entremente ao branco.

domingo, julho 25, 2004

Desmantelo

Ele olha, sem ser visto, os móveis se apagando na progressão do ocaso. Com eles, também a moça que dorme sob a janela, com um livro descansando sobre o colo. As feições confundindo-se com a penumbra da hora eterna de cada dia. Enternecido, o fantasma da família mistura uma prece com uma canção de ninar e escreve uma elegia no lusco-fusco.

quarta-feira, junho 30, 2004

A ida e a volta do pêndulo

Ele retira as mãos de sob as dela, respira profundamente, e busca com o olhar a ação fora da janela. Ela poderia permitir o silêncio, estalar uma impaciência ou contestar com um palavrório.

Ao invés, ela estica o braço sobre a mesa que os separa, desliza os dedos pelo pescoço dele, prende delicadamente o lóbulo de sua orelha entre os dedos indicador e médio e lança-lhe uma pluma com o olhar.

Ele inclina a cabeça para melhor receber o carinho, olha para baixo, envergonhado e sorrindo, e estende-lhe uma ponte.

Interrompido

Levaram embora as luzes acesas, os sons de realejo, os caminhos bifurcados e os frios no estômago. Atrelaram-me a um metrônomo e cassaram o meu sono profundo.

Montaram-me uma paisagem de paredes brancas.

Meu futuro - o meu próprio futuro! - mudaram-no de lugar.

sexta-feira, junho 18, 2004

Um mar de rostos

Cada um tem um nome que não vem ao caso. Um por um, desviam rosários particulares, procurando não cruzar olhares. Dessincronizadamente, inconseqüentemente, aumentam o múrmurio que, transformado num zumbido, derrota a atmosfera e incomoda os ouvidos de deus.

quinta-feira, abril 22, 2004

Luzeiro

A alta lâmpada que luze e desvia meu olhar do sono. Uma estrela inalcançável? Um avião que terminará entrando por minha janela? Um fogo-fátuo de um passarinho descansado?