segunda-feira, dezembro 12, 2005

Nos bolsos, um abraço

Onde eu busquei essa saudade, que é um cumprimento de festa? Existem dela vastos lagos subterrâneos que reluziriam azuis, onde um ou outro cego noturno vem beber. Eles que procuram sintonizar, nos rádios, planetas falantes; eles que fotografam janelas fechadas em noites vazias, postes apoiados sobre fachos de luz dormente; eles que esperam sobre o meio-fio para atravessar as horas do dia; que relutam a acordar, não pelo cansaço do corpo, mas pelo apego ao mundo sob as pálpebras. Bebe-se dessa saudade quando o tempo retorce seu tobogã num nó cego e, por um momento, pára de cair; quando tropeçamos, distraídos, num segundo que já nos cruzou num passado despistado. Quando a luz de um morto brilha num sonho, junto com o abraço que guardou nos bolsos da sua mortalha.

sexta-feira, novembro 25, 2005

O pequeno homem que não estava lá 2

Quem me viu chegar voando deixou as orações resvalarem baixinho nos lábios e deu abraço ao vento para, quem sabe, voar também. Quem me viu descer, mirando a terra, prendeu o fôlego, com medo que o chão me confrontasse, hostil. Quem me viu pousar sem ferir o solo lembrou de cantigas de faz tempo, dessas que fazem crianças levitarem. Quem me viu olhar, curioso, o redor lembrou de livros que falavam das plagas de onde eu vim. Quem me ouviu falar certificou-se de que eu usava sua língua como quem veste uma roupa nova e sai para o passeio. Quem se aproximou e viu o reflexo de tudo lavar os meus olhos entendeu que o mundo mal podia esperar para por as mãos sobre mim. Quem viu a gravidade me destruir, como deus devora, faminto, uma estrela, ainda jura que eu sorria.

Longe da árvore de natal

Se você calar uma dor no fundo, eu a tomarei como meu tumor de estimação. Se você trouxer do céu cheio de nuvens mais uns tantos jeitos de chamar o meu abraço, eu lhe darei as portas, as janelas e o pátio da minha casa ensolarada. Se você sentir frio durante a noite, eu aumentarei o meu calor para dividi-lo. Se você falar durante o sonho, eu colecionarei suas histórias para lhe impressionar na vigília. E trarei de volta os seus reinos submersos, cursos dos rios que desaguaram no teu travesseiro. Eu desenharei mapas para que você me encontre em novas moradas, domarei éguas noturnas para seu passeio tranquilo. Se você encostar seu maxilar no meu pescoço, eu terei ido e voltado sobre aquela ponte que eu nunca atravessei, leve das assombrações que moravam do outro lado. Eu, o mais operoso dos meus fantasmas, lograrei meu primeiro sono em casa, como um lápis respira antes de desenhar um poema numa folha de papel.

terça-feira, novembro 15, 2005

À deriva no tempo

O escuro está em todo lugar, como água infiltrando-se nas fundações de uma casa antiga construída sobre o pântano, inchando o barro dos tijolos, corroendo vergalhões, transformando o sólido cimento em areia fofa. Há coisas - como chamar o que precedeu os nomes? - que sobrevivem no escuro. Elas escutam e celebram no silêncio inchado, desde o dia em que deus se entregou a um sono cerrado e o mundo a um vazio que tenta se preencher. Nós acendemos fogueiras, janelas e cidades, mas mal arranhamos a noite que nos envolve. Eles que a habitam se comprazem dos nossos passos tateados no que não vemos. Lançam, de longe, gargalhadas abafadas, conversam em círculos ao nosso redor, resvalam sutilmente a pele de nossos braços e nucas, cobrem-nos do seu hálito. Nós dançamos, rezamos e gritamos para afastá-los. Eles se amontoam numa arquibancada posta à nossa frente. Sabem que marchamos invariavelmente para os seus braços, a despeito de qual direção miremos. Esticam lábios e tendões. Lambem nos beiços a saudade do sangue.

quinta-feira, novembro 03, 2005

O pequeno homem que não estava lá.

Quando minha imagem falhar, como uma lanterna lambendo o tacho de sua bateria, mantenha os olhos em mim para que eu não me vá. Quando eu explodir em dor, como se cravasse um espinho na carne entre os dentes, lave o tempo à minha volta com as costas da mão da sua calma. Quando a minha gravidade capturar a luz ao redor e eu inchar do meu próprio silêncio, duas palavras suas me esvaziem em gargalhada. Quando eu desenhar um muro em volta do meu próprio marco, arme de paciência vegetal o ar que range entre as falanges do meu punho cerrado. Quando eu cansar de tanto chão e minha boca transbordar de tanta terra, um abraço seu me guie, levadiço, para morar entre os sóis. Quando eu arder na reentrada, um risco luminoso que grita, acompanhe minha trajetória em compaixão, até que eu me apague fátuo. Depois feche os olhos e faça um pedido em minha intenção.

terça-feira, outubro 18, 2005

Os moradores 5

O demônio familiar criou-se no cesto de roupas sujas, amamentando-se dos cheiros, humores, azedumes e segredos da família, sorvendo as mágoas ao morder as fibras dos tecidos, recebendo com mais e mais agrado a chuva de peças sobre o seu esconderijo. Depois tornou-se grande, espalhado para os corredores, treinando silvos de ventos e assobios delgados. Tornou-se especialista em imitar as vozes dos habitantes. Chamava por um filho com a voz da mãe, ou ensaiava o brado de um irmão, apenas para adivinhar segredos na tensão dos músculos dos pescoços de quem ouvia, medir resistências, pesar farpas cravadas sob a pele, traduzir impaciências. Depois fez-se ventríloquo, plantando palavras nas frases, na verdade recuperando verbos, adjetivos, locuções suprimidas. Usava-os como pequenas setas de zarabatana, pingando de um lento e perene veneno. Desatava a fala da garganta, mentia com um armorial de verdades.

Quantas vezes o exorcizamos, o demônio familiar? Quantas, nos prantos de hospital, num presente sem data, trazido da rua, num afago desnecessário no alto da cabeça, numa mesa farta de pão e cerveja, de vozes e risos soltos, plena de nós todos? Quando encontramos, num canto improvável da casa, como um ovo de páscoa esquecido, a liga que nos escreveu iguais e, por isso, opostos, o amor que dilui as nossas cascas? Mas o demônio volta ao seu berço - seu maior ardil, a espera - e volta a crescer em gotas, quando não mais reconhecemos nossas formas, bebendo a goles de embriaguez, os assassinatos diários da convivência.

terça-feira, outubro 11, 2005

Avistamento

É o céu vazando uma improbabilidade. Uma estrela girando, vestindo o preto caldo da noite, guiando uma dança com a inércia. É o halo em vermelho, azul e branco, um ponto de luzes espinhosas - um ouriço que fere brilho. E o que diz você, quando ele vem mostrar-se próximo e gigante, prenda vaidosa, um orgulho de braços espraiados que engloba o olho que a vê? E rasa o campo onde, estirado, esperavas o absurdo. E o que diz você quando a estrela que se exibe, cheia de si e seu espanto, escolhe a você e estende-lhe a mão num facho luminoso, convidando-o para o baile?

sexta-feira, setembro 30, 2005

Os moradores 4

A bisavó - mãe do pai de meu pai -, que eu nunca conheci em vida, uma noite irrompeu num sonho lúcido, apresentando-se em palavras escolhidas e de peso medido, jurando proteção e ensinando-me um processo simples que me permitiria voar. E veio tantas outras vezes me acompanhar em meus primeiros vôos, uma visita costumeira, que me tornei seu bisneto póstumo. Era um deslumbramento, como uma casa que a cada dia ganhasse novos cômodos. Era uma uma sensação líquida, escorregar do chão para o ar. A princípio, uma dificuldade imensa de determinar o centro de gravidade, levitando o corpo pelas pernas, ou pela base das costas. Às vezes, raspando o teto, ricocheteando nas paredes, às vezes caminhando no solo, apoiado apenas nas pontas dos dedos das mãos, tomado de uma leveza de piscina. Depois, as mãos guiando o avanço, abrindo o ar como água. Eu, inteiro, um suspiro, alto como uma declaração de amor destinada a ninguém.

E foi ela quem me batizou pela segunda vez, meu batismo verdadeiro, um escudo desenhado em minha testa, minha proteção durante os passeios ao longo de um rio, um pé em cada margem, um abraço portátil. A bisavó também caminhou anos com os pés separados por uma fronteira. Uma noite, ela apropriou-se do revolver que o marido guardava na gaveta da escrivaninha, apagou as luzes do quarto, acendeu uma vela e postou-se em frente ao grande espelho oval. Serena, ela fez mira no plexo solar e disparou contra o reflexo, multiplicando-se pelo chão.

O que a família viu como um ato insano - e posteriormente cômico - foi, na verdade, uma despedida precipitada. Nos anos que e seguiram, até o momento da morte, a bisavó morou num outro mundo, longe desta casa e da outra onde agora habita. Um mundo flutuante em uma água parada, num silêncio de palavras espelhadas. Uma terra que alcançarei voando, seguindo o mapa que ela - foi uma promessa - me dará de presente.

terça-feira, setembro 20, 2005

Os moradores 3

As duas pequenas irmãs plantam-se no portão. Trazem nas faces comprimidos traços orientais e os talhos a faca de mais de uma centena de anos, cada uma. Mais do que moradoras, são visitantes que aqui estacionam de um périplo inimaginado. Estacam por horas, num silêncio paciente, observando o movimento na rua, até que alguém que deixe ou chegue à casa abra a entrada. Estalam um curto bom dia, tarde ou noite - que não se ouve - e perdem-se no jardim, em direção ao interior.

Gêmeas idênticas, diferenciam-se pela indumentária. Uma, aquela que nasceu primeiro, usa uma touca que lhe esconde todo o cabelo, um vestido laranja - sempre laranja - com detalhes de pequenas flores brancas, que se propõem jasmins, e carrega consigo uma sacola que contém um grito. A mais nova tem os cabelos acinzentados soltos sobre os ombros, cobre o corpo sem cintura com um vestido branco, coberto por pequenos hexágonos formados por quase imperceptíveis traços inteiros ou divididos por um espaço vazio, e apóia-se num cajado que na verdade é uma cobra hipnotizada.

Usam a casa como estalagem a saltos regulares de dias. Andam sempre emparelhadas, muito próximas, nunca tocando uma a outra ou avançando nem retardando a marcha. Arrastam as sandálias de dedo sobre os círculos invisíveis do tempo, escondendo nos pequenos olhos o horizonte que fitam. Prende-lhes à caminhada uma corda extensível, um fio vermelho que vaza dos ventres e dos peitos. A dor persistente, presente de filhos e maridos mortos. O langor seco de não ter mais a quem servir.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Os moradores 2

Não é um homem. É uma fotografia não pendurada nas paredes dos corredores. É um acontecimento, um cenário que não se contentou em ficar para trás na margem do tempo e empenhou o nado no rastro do barco que nos leva, desatentos. Apenas os olhos oblíquos sobre a água. É um eco calado ribombando nos limites do teto. Acompanha os nossos dias, sem que percebamos, como uma fita gomada presa aos dedos. É a paisagem que observa, um instante perene cravado no centro da sala.

quinta-feira, setembro 08, 2005

Os moradores 1

De todos os habitantes que dormem nas quinas desta casa, um me interessa em especial. Um que entende o meu silêncio ao travesseiro, que aprova a minha tola mania de sempre procurar o alento das janelas, como se esperasse algo entrar por elas, atravessando o selo de seus vidros. Nelas ele às vezes se projeta para se despedir de mim, na partida diária. Uma sombra de menino que percorre estes corredores, projetada nos quartos sem luz, alimentando-se da poeira debaixo das camas, progredindo pelas paredes, equilibrando-se aos pulos sobre o muro de meu jardim, num malabarismo noturno e solitário.

Talvez tenha sempre sido um morador daqui, precedido a minha chegada, a do meu pai, dos tijolos, ferro e esperanças que ergueram essas paredes. Talvez tenha habitado este espaço antes de qualquer outro aqui chegar. Talvez seja uma alegria tão antiga e tão represada, um sorriso escondido sob o lábio dos anos, uma dança antes que viesse a música. Talvez uma presença nômade, que tenha vencido os portões e grades, por encontrar aqui a figura camuflada de um igual, alguém com quem talvez possa brincar, na noite dos postes alaranjados, nós dois equilibristas dos muros.

Uma noite, desperto na madrugada, passou por mim na cegueira de um corredor apagado. Pude discernir sua forma na matéria densa do escuro, pude sentir a sombra do vento que sua passagem produziu, pude ouvir o amortecer dos seus passos. O resíduo de uma criança que nunca existiu, a esperança antropomorfa de uma brincadeira. Na invisibilidade, estiquei o braço e lhe ofereci a mão, num convite. Por quantos centímetros seus dedos esquivaram-se dos meus?

terça-feira, agosto 30, 2005

Fronha da minha quietude

Eu dou-lhe a mão espalmada para conter a sua e é um caminho de volta que elas percorrem no ar. Os seus dedos sobre a minha vista e eu não sou mais o medo da visita fora do olho mágico, o homem que viu outro cair pela janela, o contrapé do mundo rodado. Eu sou um peito cheio do peso da sua cabeça, uma pálpebra em que se imprime um lábio, uma folha que roda no grito do dia, a janela que carrega em si o mundo inteiro. Eu sou o ar desenhando a música, o riso escapado, soluçado, do homem taciturno, um riso que escavou anos entre argila e rochas e areia até mostrar-se ao sol, um sachê de cheiro iluminando o guarda-roupa. E no espaço oco entre o meu espanto e a minha explosão, você redesenha as linhas da minha mão, e escolhe por mim a direção no caminho bifurcado.

domingo, agosto 21, 2005

Borrow somebody's dreams 'till tomorrow 6

Com aquele semblante de quem tudo sabe, inclusive tudo o que lhe foge do conhecimento, ele disse. "No princípio, deus não conseguiu criar nada, nem mesmo um grão de areia, nem mesmo a idéia de um grão de areia. Lançava as mãos, os dedos em garras à frente, mas nada nascia do seu gesto. Foi depois de uma eternidade - e para deus todo segundo é uma eternidade - que ele entendeu. Deus, então arquiteto de um barro inexistente, criou a palavra e com ela ergueu sua obra. Tudo o que pensava era o nome, bastava-lhe gritar a denominação e a coisa surgia por conta própria, o universo escapando-se dos próprios bolsos. Imagine, então, a ledice de uma outra eternidade, um deus sorridente, divertindo-se de criar e gritar nomes, espantando-se da concretude de sua própria criação."

"E pense, ainda, na solidão da primeira letra - a eternidade dentro do segundo, lembra? - que, por um tempo imensurável, a nada podia conceder nome ou corpo. Ela mesma um deus solitário, com um alarido interno, que era um universo à procura de uma forma."

domingo, agosto 14, 2005

O quarto escuro do amor dormido

O assassino entra no quarto guardando todos os ruídos nos bolsos, conservando o sono da mulher deitada. À beira da cama, ele estaca e a observa por uns instantes, tentando adivinhar-lhe os sonhos. Mas ela os guarda sob o travesseiro e ele se ressente do seu silêncio. De semblante cerrado, ele curva-se sobre a silhueta guardada sob o lençol. E faz o que veio fazer. / Ou era um quarto que não veria a manhã seguinte. Quadros, luminárias, cômoda, cortinas de olhos fechados, o teto que guardou um grito. Era um quarto com a mão sobre a boca quando o homem ergueu a mão sobre a cabeça, faca em preparo, e imaginou interromper um sonho sobre crianças e aviões. / Ou os olhos dele já eram amigos do escuro quando entrou no quarto, que já conhecia. Lembrou-se do cheiro da mulher deitada antes de senti-lo. Observou o rosto, única parte do corpo à mostra, mesmo que parcialmente. Um quarto cheio de um frio nervoso. Pensou em beijá-la, mas não queira que acordasse. Assim, em silêncio, fez uma oração que desviou-se numa declaração de amor mudo. Tentou encontrar-se dentro daquelas pálpebras que mal enxergava. Ao certificar-se de sua ausência, buscou a faca guardada em seu casaco. A lâmina virgem, perfeita, guardada para um ato de bênção. Levantou-a e, depois de uma hesitação imperceptível testou a insuficiente resistência da carne do peito do seu amor. / Ou o pretume dentro do quarto não lhe deixa perceber meus olhos minimamente abertos. Mas eu consigo vê-lo e completo com a lembrança os traços que o escuro apaga do seu rosto. Internamente, eu zombo do seu passo revestido de um cuidado caricatural. Envaideço-me com a sua contemplação, e lhe dedico uma ternura que não sentia há tempos. O seu silêncio me explica o que irá fazer, mas eu não movo nenhum músculo. Estou decidida a ver tudo, a acompanhá-lo até o fim, a receber sua raiva como um carinho. Mas, quando o metal em sua mão deixa refletir um brilho tímido, me escondo atrás das pálpebras e prendo nos pulmões o ar que me sairá pelo peito. / Ou ela é o rumor de uma corrente que me corre dentro, uma agonia latejada, o resíduo amargo da comida que me mantém vivo. Ela é o gatiho e o empecilho da minha lágrima. Ela é o óleo que me escorre da testa, a planta escondida no ovo da morte, a mordida de um câncer. Mata-me ser tão pleno dela e não habitar-lhe nem como uma imagem gasta na calha da memória. Ela é a causa da minha morte. Eu serei a dela. / Ou cinco beijos de metal no lado de dentro do seu coração, sendo o último permanente. Faca, tecido e carne unidos. Quem lhes discerniria um do outro?

quinta-feira, agosto 11, 2005

Chapéu no peito

Termina com um grito engolido no seu primeiro pulo, um soluço ácido. Termina com as nuvens fechando-se, transformando palco em cochia, a luz ardendo os olhos sentados, espantando a audiência. Termina com um menear de cabeça, o chapéu no peito, a solenidade patética do destino abortado. O futuro que errou o caminho dói como um canteiro careca de flores. Em algum lugar fora dele nós nos alcançamos, fora desse tempo que era meu e que se perdeu, o caminho não construiu um beco, os muros - altos como a azia de uma palavra não dita - não se fecharam sobre mim. Naquele outro lugar eu não presto visitas diárias a um túmulo, sobre o qual eu planto os meus segredos. As flores mais lindas da minha criação brilhando no silêncio.

terça-feira, agosto 09, 2005

Há um dia numa noite

Eu nem sempre fui de noite, nem sempre cobri o sol com as mãos e segui os desenhos das calçadas. Foi o meu presente o nervo mastigado, o mal entranhado, borbulhando o sangue, o verde sob a terra. Em algum ponto, eu passei a dormir do lado de fora, sob a minha janela, espreitando a fala das lâmpadas, dando de ninar à cidade. Um dia, talvez na sombra de uma falésia ou na morte de um rio, eu branqueei os cabelos da minha infância e afoguei um menino. Mas, há um sonho no qual eu me dispo dos anos, em que eu abro as mãos generosas da minha vista e recebo a luz, como um fantasma de sol num dia de roupas largas. Nele você dança sem gestos e pousa sobre mim, como já fez um dia, a pluma dos seus olhos, fronha da minha quietude.

domingo, agosto 07, 2005

Borrow somebody´s dreams ´till tomorrow 5 ou A Bailarina do Veneza

Folhas secas entram revoando em redemoinhos pela esquecida janela aberta. Sobre a escrivaninha, alguns poemas escritos à mão escorregam para o piso, impelidos pelo vento de agosto. Setembro nem começou e já é interminável. Lá fora, as árvores dançam e, se alguém passasse na rua nesse instante, perguntaria se não são elas que agitam o ar que agora beija o rosto do jovem de olhos fechados, deitado em sua cama. Aproximamo-nos dele. Olhamos por seus olhos que vêem o que não podemos chamar certamente de sonho.

Haniel vem por uma rua do centro. Mãos dadas a uma moça de amarelos e negros cabelos e olhos, seria chamada Circe. Olha-a e quase mesmo acredita que ela está ali. Como se não tivesse ido embora, em um dia que a lembrança insiste em esconder. Talvez até ela não tenha sido tão bonita como agora lhe parece.

Na verdade, ele sabe, ela era ainda mais bela. O andar tem fim. Chegam à frente do Cine Veneza. Circe corre à bilheteria. Haniel pensa a tarde e como parece com outra, de muito tempo atrás. De novo, a apagada lembrança. “Balas?” Soa uma voz em suas costas. Gira no pé direito e vê a bailarina, rosto maquiado branco, com ressaltados traços a lápis preto. Roupa colante num corpo esguio. Na altura da cintura, um tabuleiro de guloseimas, pendurado à nuca por uma correia. “Quer balas?”

“Haniel!” Circe chama, acenante, da entrada, agitando na mão os bilhetes. As pessoas entram devagar, parecem estranhas, como se já as tivesse visto. Ah... memória... Como se as visse por toda a vida. A voz aveludada da bailarina parece espalhar-se no ar. “Ela não é real, você sabe. Eu sou, de uma forma diferente, mas sou, agora mesmo a lembrança tremeluz em você.” ele olha de novo a menina loira. Como foi mesmo? Há tanto tempo...

Lembra que a namorou por quase um ano, depois de outro de devota admiração. Tudo em sua vida passava por ela, como um filtro, o fundo de uma piscina. Lembra que gostava de encostar em seu pescoço e ali ficar, por muito tempo sentindo o cheiro de flor que transpirava. Circe, um dia, disse acabado tudo. Que não era ele quem ela queria, que não se vissem mais. Ele insistiu, pelejou, mas estava decidida, concreta e não a abalou nem mesmo quando caiu menino aos seus pés. Cerrada em sua decisão, de onde quem sabe originada, ela irredutiu-se. Enfim, como que conformado disse “Vou me lembrar para sempre de você” Ao que a moça respondeu, dando-lhe as costas para nunca mais: “Eu espero que não”.

“Balas?”

Olha para baixo, não, não quer. Na porta da sala de projeção, a menina loira sumiu. “Ora, mas se você não quer, o que veio fazer no cinema? Assistir a um filme? Você já viu todos.” Onde ela está , quer saber. “Ela não existe, já falei. Ficou para trás como as outras pessoas. É uma outra lembrança que já de novo perde-se aí dentro. Vamos, aqui a mão.” O rapaz enxuga a vista e estica o braço. Um arrepio lhe relampeja o corpo quando sente os dedos frios e magros tocarem os seus. “Calma, agora podemos ir, está pronto?” Ele não sabe se está, mas faz que sim com a cabeça. Ela sorri docemente, e passa-lhe a outra mão nos cabelos lisos. E assim, Haniel desce a calçada com a bailarina do Veneza que vende balas de verdade.

Chuviscos entram pela janela, molhando o chão. O tempo parece que vai piorar, talvez chova muito nos próximos dias. Uma folha marrom entra rodopiando pelo quarto e interrompe sua trajetória pousando no peito do rapaz deitado. Sua mão solta de lado da cama toca o piso, dela escorre um líquido denso e vermelho formando uma poça, que vai aumentando de tamanho, prejudicando, de maneira irreversível, o caríssimo carpete bege.

sexta-feira, julho 29, 2005

A mão sobre a boca

O meu silêncio é a mancha que turva a água, é a arma deposta aos pés, à guisa de semente. Meu silêncio é uma tosse engolida, é a tampa da garganta, é o desviado dos passos na boca do beco escuro. Meu silêncio é o de um analfabeto perante o muro alto de uma palavra, confundindo-se sombra, esquecendo-se gente. É um osso exposto, saltado da carne como um animal subterrâneo rompe o lacre da terra. Meu silêncio se alardeia, estandarte de lágrima, arde na vista como o vermelho no preto. Ao esconder-se, propaga-se, propõe adivinhações, levanta sombrancelhas e prega olhares. Meu silêncio é um farol, a dor que afugenta os barcos.

terça-feira, julho 26, 2005

Inveja de todos

Ficaram meus dedos tateando o ar, a memória como sangue embaixo das unhas. Eu sou o homem que matou a criança. Um bebê lindo, saudável, inveja de todos e destinado, desde que dado à luz, à morte prematura por um mal inato. Mas a misericórdia não é alívio. Eu sou o homem que fez da beleza ruína, eu que fechei a janela ainda no sono das tardes. Eu que levo a noite nos bolsos como bolas de gude, para espalhá-las nas ruas, derrubando os cavalos. Eu que escarneço do amor a deus, por duvidar da sua reciprocidade, por não saber se minha existência lhe toca, ou concerne. Eu que sempre imaginei os anjos nunca estive entre eles. Eu, prodigioso criador de fantasmas, acrescento mais esse aos que fazem fila na porta da minha casa destruída.

segunda-feira, julho 18, 2005

Entre o pulmão e a boca

Num quarto selado de escuro, o homem abraçado às pernas dobradas renova o grito, mas a voz lhe sumiu há anos. Quem vai escalar as palavras mais imponentes e fincar-lhes bandeiras aos cumes? Quem vai atravessar o tempo em saltos sobre as pedras em movimento? Quem vai confidenciar à mulher, que de colchão tornou-se clava, as lascas em espiral que sobraram da verdade talhada, o labirinto da noite entre os mortos? Quem, abraçado aos anos num quarto fechado, encontrará novamente a ponte do som e se fazer escutado? Ninguém. Pois o escuro tem o peso de uma frase em punhal e afoga, como a água plenificando o caminho entre a boca e o pulmão. À porta ninguém veio, nem virá. O quarto é um caminho que não saiu do lugar, é o tiro de largada que não explodiu. O homem - os olhos abertos? - sonha consigo. No sonho, é uma criança de olhos fechados, acariciando a fronte de uma fera em posição de ataque. Morde o lábio até o sangue, sem conseguir alertar a si mesmo sobre o perigo.

quarta-feira, julho 13, 2005

De onde se via a outra margem

Havia um muro - não de se pegar, mas havia - que não cortava o vento nem a vista, mas parava as mãos, entortava os caminhos, guilhotinava as palavras. E cresceu para lago, onde os pés testavam covardes a mordida do frio e cancelavam a travessia. E nem aves nem insetos vinham beber no espelho, nem o sol lavava a multidão das pequenas ondas. E as mãos confirmavam a aspereza da areia da margem, e espalhavam os grãos, semeando chão em si mesmo. E os olhos traíam o corpo e, no menor dos descuidos, já estavam além da água, brincando na paisagem impossível. E cresceu para horizonte, que é um muro entre duas miragens. E a imaginação, esse monstro de mil bocas, abandonava os olhos e o corpo, lançando-se além da linha da vista, retornando relatórios que enchiam de garras e sombras a obesidade pronunciada de um vão intransponível.

terça-feira, julho 12, 2005

Dentro e fora

Eu acordava no sonho com o barulho angustiado de um morcego, ou um pássaro da noite, debatendo-se contra a janela fechada do meu quarto. Asas e garras reclamando o vidro, chorando o frio da noite lá fora, um vulto agitado, multiplicado pelo movimento, mal delimitado pela fraca luz externa. Eu levantava, o passo frouxo, até o interruptor pretendendo empurrar com a claridade o animal de volta a seu lar feito de madrugada. Mas a lâmpada acesa desenhou, através do vidro, o rosto e as palmas das mãos de uma criança morta.

Eu acordo com um trem atravessando as minhas veias e a boca num travo. Hesito em iluminar o quarto, mas, quando o faço, a janela vazia convence-me do sonho. Pensando em matar a sede, abro a porta a tempo de ver o velho no final do corredor. Ele volta a cabeça para mim e me convoca, com o dedo indicador, entrando no último quarto. Eu recuso-me a segui-lo e, em vão, tento acordar da vigília.

terça-feira, julho 05, 2005

Borrow somebody's dreams 'till tomorrow 4

Eram oito pessoas na pequena casa onde o corpo dele esperava a hora de virar chão. Três mulheres choradeiras, a viúva assombreada pelo véu preto e quatro filhos incriados. Quatro velas grossas em volta do caixão enchiam o ar do cheiro lamuriento da cera derretida, porque as flores colhidas na manhã recém-parida já haviam fechado os seus frascos. A cidadezinha fazia fila para honrar o novo morto, que perecera com uma semente de chumbo plantada no coração, sem que se soubesse quem fora o lavrador. Os condolentes seguiam pela lateral da casa e, da janela, lançavam suas bênçãos e pesares, partindo em seguida para seus próprios restos de vida.

O protocolo fúnebre foi quebrado pela Velha, que adentrou o recinto reservado à família e às carpideiras. Ela tinha a fama de se mover no plano de dentro das coisas, moldá-las por suas hastes não vistas, e o presente, que não se sabia de deus ou do diabo, afastava e encantava os vizinhos, o receio recomendando a prudência e a distância. Assim, imperturbada, ela avançou até o morto. E ninguém viu retesarem-se as cordas invisíveis que enchiam a sala, quando ela debruçou-se sobre o rosto do homem vazio, soprando segredos no seu ouvido, depositou-lhe uma moeda sobre o selo dos lábios e, no pé direito, introduziu um alfinete na carne que não mais sangrava. E ninguém desfez-lhe o artifício depois que ela voltou para o seu isolamento.

Foi tarde da noite do segundo dia que surgiu o assassino. Os olhos vermelhos e aumentados, a boca aberta, as roupas imundas. Atravessou a cidade, sobressaltado e espantado das sombras imóveis das casas, e jogou-se dentro da cadeia, despejando em palavras tudo o que tinha por dentro. Disse que matara o homem à traição, desarmado e encurralado, por uma briga de terra a mais ou terra a menos, que lançara-se no mundo para fugir à pena e que já avançara um trecho seguro quando a noite trouxe as sombras. E com elas, as vozes de homens vigilantes, passos de encalço cercando-o entre o matagal. E por uma madrugada inteira os perseguidores o acompanharam de perto, invisíveis mesmo em campo aberto sob a lua cheia. Nem o dia trouxe a paz, nem calou as falas confundidas, nem interrompeu os passos, nem mostrou-lhes os rostos. Não chegavam, apenas o seguiam e arrodeavam. Acuado pelo que não via e exausto pelo peso carregado, o matador decidiu ser protegido pela verdade, seguido de perto também no seu caminho de volta e confissão.

E foi na madrugada calada, com o assassino dormindo em paz em sua cela, que os insones nas janelas puderam ouvir os passos pesados e sem donos de vinte ou trinta homens, numa lenta marcha de retorno.

domingo, julho 03, 2005

Bem junto com a rua o mundo acabava

Eu, na janela, ouvindo a conversa do vento e desfiando a vista. Era um bairro suspirando por sua própria invenção. E foi o prédio concretado do costume que me fez querer você à mão, ter novamente com quem dividir os meus olhos improváveis. Dizer veja, numa poça d’água, um raio de luz tornar-se uma dançarina a girar sobre os pés, desfazendo-se do próprio peso, veja um coqueiro fazer reverências ao vento, as nuvens acelerarem o passo da tarde, um gato equilibrar-se entre a guerra de dois quintais, veja um horizonte contar a história do campo que esconde, o plano de deus terminar em ponto e vírgula e o mundo ignorante de seu próprio fim. Uma tarde que se perdeu em mim, e eu perdido nela, por ser o único confidente do seu caminho coberto. Para quem mais eu mostraria os pássaros voando em ritmo de valsa: duas ascenções e uma queda? A quem eu sugeriria música de suas asas?

terça-feira, junho 28, 2005

A rede do trapezista

Os olhos de meu pai eram pistas de adivinhação. Eram como o mar que se incha do escuro do céu antes da chuva. De verdes, tornavam-se azuis na euforia e fechavam-se num cinza inconfidente quando a vida lhe comia por dentro. Eram a sua concessão máxima para falar-nos dos lagos que lhe transbordavam. Um dia, o vento que não soprava da sua boca e o rio que lhe corria subterrâneo explodiram-lhe o coração e o estômago. Meu pai pequeno, diante do mundo e sua bocarra, secou para dentro, engolindo lembranças, formigas carnívoras urdindo cavernas nas suas entranhas. Já era do outro mundo antes mesmo de deixar este. Já estava no outro lado, antes de pisar a estrada.

Um sonho bom é sonhar-lhe os olhos azuis, o sorriso que era a rede sob o meu trapézio, o vento assanhando-lhe os cabelos que não herdei. Herdei, sim, os seus lagos e suas ventanias e com eles enfeito a paisagem do nosso reencontro. No dia em que sua vista refletirá novamente uma redoma sem nuvens. Meu pai gigante como eu me lembro, as mãos novamente a me levantarem do chão. Nós dois sonhados por um terceiro, vivos pela mesma saudade.

quinta-feira, junho 23, 2005

Instruções para atravessar paredes

Esta casa foi erguida sobre a promessa de um sorriso, sobre flâmulas e confetes que adivinhavam o desfile do bom futuro. Estamos ainda aqui, os olhos vidrados no horizonte desta avenida, aguardando ansiosos o primeiro carro do cortejo.

Nenhuma outra casa acorda na cauda da noite como esta. Enquanto todos dormem, abraçados às suas inconfissões, ela afunda na terra, frações imperceptíveis engolidas. O chão avançando paciente sobre a família que ainda será sua.

Na madrugada ela revela os seus sons, range segredos, estala profecias. Beija as testas dos dormentes, perdoando-os por suas inocências e perversidades. O futuro não vem agora. Talvez chegue quando os próximos viventes caminharem desavisados sobre o nosso telhado soterrado. Talvez assim se cumpra o destino da família, herança dos seus mortos, gravado em argamassa, nas paredes desta caixa.

domingo, junho 19, 2005

Borrow somebody´s dreams 'till tomorrow 3

É uma catedral inacabada, com as portas dolorosamente fechadas. Panos e plásticos semitransparentes cobrem fileiras de bancos e andaimes nas paredes. Meu andar pelo chão conjurado ecoa um exército de passos nas paredes cinzas, nos rostos sempre surpresos dos santos. No centro do teto, folhas de um ouro alaranjado são projetadas por um lago em fogo no pé do altar. Foi aqui que uma vez acendi um assoalho de velas para você, onde imprimi a marca dos joelhos num piso opaco, onde, deitado de bruços, os braços estendidos em cruz, compus uma reza em simetria, ornando cada tônica, dourando suas pausas, estalando seus fonemas, para depois recitá-la em linha e ao inverso, num perfeito palíndromo, uma esfera imaculada.

Foi ainda aqui que a minha oração incendiou-se até o pó das cinzas, quando vontade do vento virou. Minhas palavras ardendo-me uma a uma nos lábios, enquanto pronunciava-as pela última vez, queimando-me a garganta em despedida. Minha ladainha perfeita, a arquitetura do nome de Deus, que eu escreveria somente para os seus olhos lerem. Foi aqui que se desfez a coisa mais pura que eu pude criar. Foi essa saudade que apagou as minhas velas e é ela que sustenta as colunas desta nave.

É nesta casa inabitada de orações que eu empilho bancos, oratórios, relicários, crucifixos, e a eles ateio o mesmo fogo. Avivando uma fogueira esfomeada, cujas chamas alcançarão o canto escuro entre os arcos que atravessam o teto, onde Deus protege o seu sorriso embolorado e sua barba perfeita. É o seu recinto que eu deixo e cujo adro procuro, a fim de ver arderem seus vitrais na noite das lápides.

quinta-feira, junho 16, 2005

Desta última manhã

Se um vento batesse minhas portas e janelas, se o dia lavasse meus corredores com uma luz tão intensa, que marcaria as cores de meus quadros e rodapés, e estes iluminassem a noite, na ausência das lâmpadas, se a graça de crianças numa corrida de bicicletas ventasse nas minhas barbas e lacrimejasse os meus olhos, não de um choro de quem ora para um lugar vazio, mas cobrindo minhas pupilas de um brilho de chegada, se o som de rádios AM, vencendo vidraças e fugindo das cozinhas nesta última manhã, entremeasse os cabelos que não tenho, convidando meu suspiro para dançar.

Como um dia pinçado das fileiras acumuladas nas minhas prateleiras, um dia limpo e vivo em seu brilho, lustrado e posto sobre a mesa para arder na noite, na madrugada fechada, de quietude morta, onde nenhum som pula os muros do quintal. Os grilos calam quando a visita indesejada se aproxima. Se eu compusesse novamente a pureza que criei e lancei ao céu sem volta, se pudesse outra vez preencher de barro a beleza dessa estátua inexistente, esculpindo-a num processo inverso, não me doeria tanto a madeira maciça desta porta batida às minhas costas e o silêncio que arranha o seu espelho como um cão apanhado de frio.

sexta-feira, junho 10, 2005

Um grito depois do medo

Começa com um grito que vem depois do medo. Às vezes tão agudo que poderia ser confundido com um assobio de uma janela num dia de agosto. Depois, o colchão sob mim some. E o piso. E a Terra. E o silêncio se aprofunda, com duas mãos fortes que não existem, comprimindo meus ouvidos. Eu fico assim, numa queda tão grande que deixa de ser queda, para ser apenas uma suspensão no vão sem horizontes. Então, de algum lugar de dentro ou de fora, começa o murmúrio. A princípio, tão suave que me pergunto se o estou ouvindo. Crescendo no volume, ele começa a ocupar o meu silêncio, como um rio preenchendo um copo de água. Concentrado, tento acordar - e o faço - mas estou de volta somente aos olhos, longe, ainda, do restante do corpo que se rebela aos meus comandos.

Pescoço, braços e pernas inertes, enquanto uma multidão invisível - homens, mulheres, crianças e outros - conversa em meu quarto. O quase morto que eu sou observa as vozes sem gentes, aos poucos despindo-se do pânico do contramundo, e passa a tentar pinçar, das milhares de palavras que colidem, um colóquio inteligível que seja. E tão interessado me encontro neste exercício de concentração, que apenas após alguns minutos percebo a muda figura de pé, ao lado da minha cama, quase no ponto cego da minha vista, observando-me com uma científica curiosidade

quinta-feira, junho 02, 2005

Aos amigos ausentes

Os copos cheios unidos em prece e lembrança. Que cada um de nós dê ao demônio o que lhe é merecido. E que o tempo retorça e que seja amanhã a hora do reencontro. Que nos encontremos plenos de nós mesmos, cotovelos sobre a mesa, relacionando as conquistas e as perdas. Olhos cansados, amigo, cheios de tanta estrada, tanto descaminho, tanto desmantelo, a expor os ventos soprados nos rostos, os beijos furtados, noites em claro, gritos calados. Trocaremos os saldos numa competição carinhosa. Uma saudade da inocência, um coração mais duro, uma alma mais pura. Desarmados, porque no descanso da taverna não se usa armaduras, nem elas existem entre nós, falaremos da noite escura, das bestas escondidas atrás das árvores, do sangue que nunca desgrudou das espadas, da companhia da morte que morava na boca de algumas mulheres. Beberemos o vinho e a cerveja, até transbordarmos os copos dos corpos, e caminharemos abraçados sob os postes, cantando canções que entoávamos quando o mundo era vasto e o espírito era imbatível. Seremos melhores, seremos mais fortes - embora mais tristes e os olhos um pouco mais opacos, é certo -, seremos o orgulho um do outro, porque teremos cumprido o destino - ora terrível, ora glorioso - que nos cabia. E gritaremos em desafio aos velhos deuses de rostos sombrios e carrancudos: "É o melhor que podem fazer?". O silêncio, como sempre, será a resposta.

Para o Galego.

terça-feira, maio 31, 2005

O menor dos ponteiros

Olhe o desenho de uma hora fechada em si mesma. O menor dos ponteiros interrompendo o seu trabalho para observar as revoluções do companheiro maior, há voltas sem conta. É uma estrada em círculo. Uma água parada tomada de um braço de rio. Nesse espelho se reproduz translúcido o rosto do pescador, uma aparição ondulante. Trancado dentro do momento, ele captura um peixe em forma e cor de faca, erguendo um punho fechado e um sorriso, em sincero ato de auto-aprovação, para devolver imediatamente a presa ao seu habitat, mal contendo a excitação na espera de colhê-la novamente.

Vento nenhum move as folhagens às suas costas. Animal curioso algum vem ver o seu sucesso e seu fracasso repetidos.

quarta-feira, maio 25, 2005

borrow somebody's dream 2

Era a noite do dia em que a avó se encantara. Uma partida tranqüila, contida. Uma morte que chegou invisível. A avó saíra da vida como alguém se retira cedo de uma festa sem querer magoar o anfitrião. Talvez tenha tentado não me magoar. A mim, que vigiava seu último instante. Foi-se entre um baixar e subir de pálpebras, ou durante uma distração na janela, ou após o ranger de um assoalho às minhas costas.

Tanto que sua morte não me chegou quando a vi, enfim, imóvel, nem quando a tomaram do leito. Nem fui tocado pelos pêsames sempre óbvios ao lado do caixão, nem pela sua descida através da boca faminta da terra. Não me ensejou nenhum aprendizado, o silêncio cercado pela família na sala-de-estar, ao fim de tudo.

Ela morreu. Isto eu só entendi sozinho na fraca luz da rua que chegava pela janela, abandonado, sem saber por quê, pelos outros viventes daquela casa. Quando uma abelha noturna atravessou a sala em piruetas, oscilando num vôo de iniciante. Quando ela cruzou o ar à minha frente e pousou no braço direito do assento cativo da avó. Quando, sob o peso irrelevante do inseto, a cadeira pôs-se a balançar.

sexta-feira, maio 20, 2005

A sentinela no exílio

Torne-se o retrato de um momento, uma pintura espatulada, perfeita de cores tão diversas. Pendure-se como um quadro - ou uma janela - debruçado sobre a minha cama, abençoando meu sono por todas as noites. Não me olhando diretamente, como o pudor ou o segredo a impedem, mas desviando o olhar para um ponto inexistente, hesitando a cada frase, deixando escapar palavras em voz baixa, para depois escondê-las. Para onde se varre o que já foi dito?

Alimento-me das palavras que você não quis dizer, do que transbordou da sua prudência. Eu, que sobrevivo três vidas antes de cada segundo, recolho esses transbordos como os fios e sonhos que lhe caem da cabeça, como as lágrimas que lhe vertem para dentro. Eu sou o senhor do que você guarda, de suas muralhas erguidas em pedra intransponível, dos seus portões levadiços. Eu habito o fosso em torno de você. Uma sentinela exilada, um dragão domesticado.

Faça-se o crucifixo da minha hora morta, velando-me e amaldiçoando. Transforme-se na imagem gravada a escopo no fundo do meu olho, na ponta dos meus dedos, ventando entre os pelos do meu nariz. Um fantasma intangível para sempre ser olhado.

E eu percorrerei os dias sempre armado da minha estupefação. Uma criança guiada pela mão de quem não está mais à frente.

sexta-feira, maio 13, 2005

A visita

Não sei que obrigação mórbida me empurra para dentro do quarto. Dentro dele, quatro velas grossas, depositadas em cada um dos quatro cantos invocam os seis fantasmas que ali estão, de pé, voltados contra a parede branca. Cada qual, uma fatia do tempo, uma palavra calada, uma esquina dobrada há anos, um membro da família. É o meu receio, esse que escorre debaixo das minhas unhas num suor corrente, que os impede de voltarem as faces para a porta onde estaco. Diz o menor, de calças curtas e cabelo engomado, ao lado da velha de cabelo assanhado: "Que tanto lhe angustia ver um de nossos rostos? Que temor é esse que me segura pelos braços? O que você tanto não quer ver?".

"O tempo descascado na sua face. A trajetória da morte. O avesso da minha esperança", arrisco eu.

"E qual desses você já não adivinhou ao olhar-se no próprio espelho à perda de contas, parente?", responde a criança.

Vejo um relance de sua orelha, na luz de vela que cambaleia. A linha do pescoço perdida na gola apertada e bem arrumada. Em que joelho da memória dos meus antepassados aquela voz permanece conhecida? "Mostre-se então", eu peço, a mão apoiada no vão da porta, o pé recuado em alerta.

Como se adivinha um sorriso através de uma nuca? "Não agora. A sua hora de nos ver não deve demorar", diz o menino de um passado antes do meu.

O esguio calvo de paletó, na outra ponta da parede levanta e desce a mão, como se espantasse uma memória insistente do ar ao lado, e o vento que produz apaga as quatro velas. Eu sou devorado por trevas e contenho no plexo solar um grito que recebi de herança.

domingo, maio 08, 2005

O dom

Meu tempo terá panos azuis ao fundo, um ar amarelado de fotos vetustas, uma certeza pétrea do alcançado e a levidade dos bons ventos. E eu terei a sabedoria daquele que, por eras, debruçou-se a ler num quarto escuro. Trarei uma praia branca em cada bolso e um desinteresse amoroso pelas coisas do mundo. E você terá o sinal. Trará em si a minha fleuma e o controle que eu queria ter. Será, a um tempo, cama e acalanto. Tomará o meu rosto em suas mãos, como se faz com a água de um riacho. E saberá, pelos olhos que pôr em mim, de todo o sentido que eu quero que saiba. E dirá que tudo é bom e que nada é mais.

domingo, maio 01, 2005

Meu sobressalto

O que você não diz eu recolho das frestas entre as suas palavras. Entre você e eu mora a minha perplexidade. Eu me assombro dos seus silêncios prolongados, do seu instante congelado, do meu ar suspenso. O que você não diz é um vulto que atravessa uma porta de uma casa vazia, uma conversa sussurrada entre parentes mortos, um rosto na janela. Meu sobressalto, minha antoiança. Um dedo que percorre a extensão da minha espinha. Eu me espanto de você, como alguém olha uma estátua que, de repente, ergue as pálpebras, mostrando os olhos brancos.

terça-feira, abril 26, 2005

Uma fenda

Eu caminho pelas ruínas de uma noite perdurada, um escuro que não se deixou raiar. Uma madrugada que se debruçou sobre a cidade – e suas lâmpadas – e a ela aferrou-se com os braços e pernas fortes de uma mulher amorosa. Uma noite sem gente, sem vento, sem estrelas. Sem termo. Ecoando sobre si mesmo, um último grito pode ser escutado, ou imaginado. O fim num gemido que não saiu da própria dor. Eu despertei atrasado, acordei um segundo depois de o tempo passar. Vi-me no rascunho do mundo, no resquício de tudo, no lado de fora da moldura de uma fotografia. Eu cheguei aqui dando um passo para trás.

Como num poema antigo, ando pelas ruas, acendendo fósforos para ler os seus nomes. Como o zelador do ocaso, vou fechando a portas que restaram abertas. Produzindo luz para ver as sombras. Investigo todas as janelas, frestas, esquinas. Procuro um fantasma para me convencer vivo.

quinta-feira, abril 21, 2005

O mundo arrodeou

Eu, que nado mal entre os acontecimentos, que bóio desavisado na maré das coisas. Ocupado em ocultar nuvens escuras atrás de um céu azul, fui me engajando em não ouvir um murmúrio crescente que se avolumava às minhas costas. Era um rumor de água espumada, de pedras assaltadas, de encontros de espadas líquidas. Era um tropel da cor do limo, o som de milhares de cascos lançados numa onda. E eu, minha linda, quando o chão voltou a dar piruetas, fui colhido nessa vaga, levado para o fundo, o ar contado nos pulmões. Eu fui submerso pela rebentação dos tempos.

domingo, abril 17, 2005

Tratado do mundo inverso

Minha casa repousa dentro das paredes da vista. É ali onde transito, por trás dos quadros, interruptores e espelhos. Sou eu que posso esticar os segundos, segurando-os pelas orelhas, como crianças colhidas em faltas. Arranco da noite fotografias do seu lado avesso, do mar desapercebido que inunda as ruas, transformando avenidas em correntes. Adivinho histórias repetidas nos rostos transeuntes. Atos num palco, sinais num sonho.

Por isso, não registrei seu nome antes da terceira vez que ela o repetiu. Reconheci nele todos os nomes - no seu rosto, todas as outras faces - que nadavam no mar indiviso que afogava uma cidade erguida sobre falésias.

quarta-feira, abril 13, 2005

A coleção

Encostava o peito no gradil da varanda e inspirava a madrugada da cidade, até plenos pulmões. O ar escapava-lhe aos poucos, enquanto pensava cada uma de suas desgraças pessoais. Colecionava-as, preenchendo uma secreta sala de troféus: o pai encantado, o amor danado, o cotidiano errado. Orgulhava-se delas, cultivando-as em jardins de cores foscas, flores triunfando sobre o chão. Nelas adivinhava um fadário superior, um sofrimento pleno de realizações, a prova de um destino especial. Sorvia as luzes estendidas num tapete vivo e soprava sobre as ruas uma jactante seleção de fracassos. Como alguém que estende, à janela das núpcias, um alvo lençol manchado.

domingo, abril 10, 2005

A vida na caixa de fósforos

Duas irmãs habitam uma casa morta, de pequenas e ovais janelas vivas. Ambas lamentam a ausência de portas, costurando, cada uma, bordados longos como vidas inteiras emendadas. E bordam histórias em desenhos, em alguns dos quais você colecionaria interjeições de espanto, ao sentir-se frente a um espelho claro. Vem ver, através da janela, como elas intoleram-se, lançando reciprocamente originais maldições, e alimentam-se repetidamente do coração da companheira. Veja também como perdoam-se após cada mordida, num incondicional amor fraterno.

quarta-feira, abril 06, 2005

Cadeia

Há peixes que nadam no fluxo - ou no leito estático? - do tempo. Sim, porque o tempo tem nós, reentrâncias, locas. E, se movimenta-se, o faz em torno do seu próprio marco, como alguém que caminha pelas paredes de um quarto sem janelas.

São esses os mesmos peixes que trafegam no meu - no seu? - sangue, que, por um tobogã de veias, buscam o coração, e lá esperam para serem novamente alçados, por uma pulsação ordinária, de volta ao vagar sem objetivo. Eles compõem o líquido que é o silêncio do corpo. Até o dia em que a máquina se despede do seu labor.

O tempo dá voltas em si mesmo, numa única pulsação infinitamente estensível, repetindo nomes, rostos, erros. O tempo deixa um rastro no seu próprio sulco, induzindo-nos a pensar que os fatos decorrem de outros. Um segundo como conseqüência do anterior. Como se o trespasse de uma lâmina brilhante pudesse, realmente, interromper o ofício de um coração, espalhando o seu silêncio pelo chão.

segunda-feira, abril 04, 2005

o resto em branco

Mas o meu passo é lento e minha companhia mais freqüente é o ar atribulado pela ausência dos que seguiram adiante. Como a presença residual de um dedo ou um braço arrancados, de uma noite sem dormir, de nove minutos inexplicáveis suprimidos da passagem do tempo. Ou como a mulher que se vê uma tarde no jardim e que na verdade não está lá.

quinta-feira, março 31, 2005

Sobre as próprias pegadas

Entenda o esquecimento como a introdução, lenta e voluntária, de um prego sob a própria unha. É caminhar de volta sobre os próprios passos dados numa praia, apagando as marcas nessa dança encantada e invertida. É escolher a sobrevivência das memórias, dar as costas, por fim, a uma porta trancada. É desconhecer todas as maravilhosas paisagens das trilhas não percorridas.

terça-feira, março 29, 2005

Conjuração

Na folha branca da sua nuca eu desenhei símbolos de encantamento. Uma estrela de cinco pontas; uma ave sem nome, que costuma repousar sobre as muralhas terríveis em torno do trono de deus; uma linha retorcida e um ponto esticado, que representam a única vela a ser acesa na última escuridão do mundo; e a doce e invísivel marca de um beijo que, eu cheguei a pensar, nunca secaria.

segunda-feira, março 21, 2005

Anotações tiradas de um livro de magia

De você componho um inventário. Um sorriso que demorou horas para brotar; um olhar lançado como uma âncora através de uma janela de carro; a mão medindo a textura de um lençol branco; a dor mal disfarçada pelo silêncio dos olhos; a fina areia branca salpicada aos pés, numa foz de rio; os cabelos sempre arranjados numa encantadora e dolosa bagunça. Um estranho modo de contar uma vida. Um amor como um caderno de recortes. Folheio-o como um imperador aguarda, à brisa de um espelho d'água, a conclusão dos seus dias. Todo o império ao redor ganhou a importância de um brinquedo jogado numa caixa de papelão.

quinta-feira, março 17, 2005

Instrumentação

Haja rodar nesse mundo meio-penumbra. No sonho, eu percorro o Globo a passos de sete léguas, sempre mirando o Leste. Não há pausa de descanso, pois o desmantelo está sempre nos meus calcanhares, bafejando a minha nuca, e eu tento manter-me sob a luz do dia.

Até que uma saudade, uma água pesada na qual estou imerso desde o meu nascimento, arrasta-lhe para dentro do meu mundo dormido e interrompo a minha corrida para novamente respirar o seu hálito quase esquecido. Eu toco sua face, como se espalhasse areia, e você se desfaz. E todo o redor mergulha numa madrugada de nanquim.

E, se tivesse voz, você diria, entre o consolo e a repreensão: "É sempre noite em algum lugar".

terça-feira, março 15, 2005

lêdo

A menina das doze horas, areia entre os dedos, a medida do juízo, a desmedida, a doida. Ela é um passarinho, olhando esquisito para o que não entende. O mundo lhe é uma coisa nova, até sempre.

Estrela é um pedaço ínfimo de céu, um furo numa manta. Falta um rosto para compor a paisagem, e dar à noite seu domínio. Ela é uma procuradora de inícios.

Para onde vai a fumaça dos nossos cigarros? Depositada, como fantasmas, no amplo limbo das coisas que tentam superar sua findada existência, a fumaça dos cigarros são os números de deus.

segunda-feira, março 07, 2005

Uma forma de despedida

Esta é uma despedida. É um aceno de quem vai ganhar distância o modo que o olho agora, sabendo o que você ainda não sabe, a minha saída do seu mundo. Ao beijá-lo, estou colhendo de volta todas as palavras que depositei em você, e tecendo numa língua estranha um epitáfio.

Esta é uma despedida e, se você soubesse ler a escrita da pressão do meu corpo sobre o seu, saberia disso. Dispo-me como se me vestisse, acaricio seu rosto como se fosse erigido de areia, retirando a camada frágil do amor que ali acumulei. Enquanto você procura significados na minha pele e engana-se, bebendo dos meus cheiros, eu seguro a sua cabeça e, lenta e pesarosamente, introduzo na sua nuca o punhal da minha ausência.

Esta é uma despedida e, quando escutar, no seu ouvido beijado com afeto, o meu último suspiro, já terei ido embora das terras novamente secas do seu espírito.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

O primeiro fantasma

Ah, eu lhe perguntaria se aquele dia naquela janela indormida, perante o apoio firme de um cigarro, se foi você quem soprou as árvores no fim da rua, num aceno para mim. Se era você do outro lado do fosso. Se eu, que vivo na ausência de deus, rezei para a pessoa correta e se não foi vazio o abraço que eu lancei por sobre as águas paradas da realidade. Se eu estava certo em dormir sobre o travesseiro confortável das palavras que eu não consegui dizer.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

paraclausítiron

A rosa, um perfume encalacrado, um receio com pétalas. Um dia de ventania no chão ou um braço armado de espinhos. Um espelho sem rosto refletido e um espelho estilhaçado.

À porta, alguém esperando. Ante a campainha, um dedo estacionado no espaço.

sábado, fevereiro 12, 2005

Ragnarok

Menos que um sonho, um quadro garimpado no mundo submerso. Trezentos pombos pousados sobre um telhado sombrio, de olhos marcados no mar adiante, esperando um nascer de sol que nunca virá. Um silêncio reverente, o espírito de deus novamente pairando sobre as águas.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

O fio da vista

A sua angústia era quando ela suspendia uma sentença no seu decorrer e lançava o olhar longe, como uma tarrafa a um leito vivo de rio. Ele prendia a respiração e ordenava a si mesmo: "Desta vez não". Mas o tempo aflito de três ou quatro segundos e um silêncio berrante lentamente empurravam-lhe a cabeça para o mesmo lado. E ele surpreendia-se vasculhando o vazio, procurando pelo outro mundo que a chamava.

Assim ela o vencia sem disputar. Moldando estátuas intrigadas no barro velho e viciado que o compunha.

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

O passeio

Sou alguém parado à porta de um quarto, o pensamento lá dentro, mas as pernas estancadas. Estou sozinho entre os meus, carregando comigo o meu próprio vento para agitar os cabelos que já tive. Vejam, estou do outro lado da rua, acompanhando vocês, no meu próprio e custoso passo. Por favor, não se apressem demais. Sou alguém que fica para trás, que se perde no caminho. Aquele mesmo caminho que trouxe comigo, como alguém atado a uma bola e correntes feitas de ferro.

Quem fez essa maneira de parar na esquina das coisas? Olho vocês, entre a inveja e o amor, lutando por cada passo com a atmosfera densa à minha frente.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

o redor

Eu não tenho termo. Eu sou ou não deus. Eu sou um vento que não é vento. Os lábios eu os tenho mudos, secos. Sei que há escadas para todo o sempre subir e a palavra é onde um logra o topo.

Meu olho é o mundo. Há óculos para deus?

Dominar a palavra é saber dizer o nada. Dominar os espaços entre os tempos. Moldar o dia, ainda na noite, e pendurar interrogações em estrelas, como ganchos para salvar náufragos celestes.

Há certezas para deus?

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Vôo noturno

Braços abertos, meço a distância do espaço-todo. Uma piscina de estrelas. O estômago nem esfria mais. O silêncio do ar indeciso encontrando os ouvidos. Não bato asas ou estico o punho fechado, avante. Apenas me dou e o meu destino faz o sabor dos ventos. Lá embaixo carros e pessoas colidem. Aqui o céu se duplica e ao seu dobro. Um dia, não acordo mais.

terça-feira, janeiro 25, 2005

Já visto

Sempre foi um cansaço de tudo, como se a vida fosse a releitura de um livro. Eu me precedi. Eu já tinha existido antes de nascer e o que surpreendia e empolgava todos, para mim era já visto. Essa foi a minha solidão: retirar das coisas sentimentos pesados e lentos, mergulhando na sua latência, e não a explosão leve e excitante da descoberta. No tédio, eu moldei o meu caráter.

domingo, janeiro 23, 2005

A mão suspensa

Toda a vida foi esperar o momento ideal e adivinhá-lo pretérito. Poderia escrever uma biografia, apenas com os passos que não dei. Uma vistosa linha de tempo desprendida do tempo real. Fui um observador dos dias, e descobri que não há segundos perdidos entre as horas.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

borrow somebody's dreams till tomorrow

Atravessando uma ponte, ela fez uma promessa ao rio. Eram seis horas do desmantelo e a cidade entoava uma uníssona Ave Maria. Ela marcou um encontro para dali a alguns anos voltar, quando aquelas mesmas águas relavassem o leito, para juntas trocarem histórias do mundo. E, acordada, sonhou todas as coisas que iria contar com um sorriso experiente no rosto. Quando levantou os olhos da água, alternou ansiosa a vista da esquerda para a direita, constatando, assustada, não lembrar de que margem tinha vindo.

Janela da alma

A escuridão abençoa a todos. Meus olhos fechados são um palheta infinita. Pisco-os, e escuto o ruflar das pequenas asas que são. Por trás dessa muralha, eu sei de cores que te cegariam, eu leio a escrita anelada do tempo, eu conjuro para nós um arcanjo de semblante ileso, um dos poucos que escaparam das vistas do Teu Senhor.