sexta-feira, setembro 30, 2005

Os moradores 4

A bisavó - mãe do pai de meu pai -, que eu nunca conheci em vida, uma noite irrompeu num sonho lúcido, apresentando-se em palavras escolhidas e de peso medido, jurando proteção e ensinando-me um processo simples que me permitiria voar. E veio tantas outras vezes me acompanhar em meus primeiros vôos, uma visita costumeira, que me tornei seu bisneto póstumo. Era um deslumbramento, como uma casa que a cada dia ganhasse novos cômodos. Era uma uma sensação líquida, escorregar do chão para o ar. A princípio, uma dificuldade imensa de determinar o centro de gravidade, levitando o corpo pelas pernas, ou pela base das costas. Às vezes, raspando o teto, ricocheteando nas paredes, às vezes caminhando no solo, apoiado apenas nas pontas dos dedos das mãos, tomado de uma leveza de piscina. Depois, as mãos guiando o avanço, abrindo o ar como água. Eu, inteiro, um suspiro, alto como uma declaração de amor destinada a ninguém.

E foi ela quem me batizou pela segunda vez, meu batismo verdadeiro, um escudo desenhado em minha testa, minha proteção durante os passeios ao longo de um rio, um pé em cada margem, um abraço portátil. A bisavó também caminhou anos com os pés separados por uma fronteira. Uma noite, ela apropriou-se do revolver que o marido guardava na gaveta da escrivaninha, apagou as luzes do quarto, acendeu uma vela e postou-se em frente ao grande espelho oval. Serena, ela fez mira no plexo solar e disparou contra o reflexo, multiplicando-se pelo chão.

O que a família viu como um ato insano - e posteriormente cômico - foi, na verdade, uma despedida precipitada. Nos anos que e seguiram, até o momento da morte, a bisavó morou num outro mundo, longe desta casa e da outra onde agora habita. Um mundo flutuante em uma água parada, num silêncio de palavras espelhadas. Uma terra que alcançarei voando, seguindo o mapa que ela - foi uma promessa - me dará de presente.

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