quinta-feira, setembro 08, 2005

Os moradores 1

De todos os habitantes que dormem nas quinas desta casa, um me interessa em especial. Um que entende o meu silêncio ao travesseiro, que aprova a minha tola mania de sempre procurar o alento das janelas, como se esperasse algo entrar por elas, atravessando o selo de seus vidros. Nelas ele às vezes se projeta para se despedir de mim, na partida diária. Uma sombra de menino que percorre estes corredores, projetada nos quartos sem luz, alimentando-se da poeira debaixo das camas, progredindo pelas paredes, equilibrando-se aos pulos sobre o muro de meu jardim, num malabarismo noturno e solitário.

Talvez tenha sempre sido um morador daqui, precedido a minha chegada, a do meu pai, dos tijolos, ferro e esperanças que ergueram essas paredes. Talvez tenha habitado este espaço antes de qualquer outro aqui chegar. Talvez seja uma alegria tão antiga e tão represada, um sorriso escondido sob o lábio dos anos, uma dança antes que viesse a música. Talvez uma presença nômade, que tenha vencido os portões e grades, por encontrar aqui a figura camuflada de um igual, alguém com quem talvez possa brincar, na noite dos postes alaranjados, nós dois equilibristas dos muros.

Uma noite, desperto na madrugada, passou por mim na cegueira de um corredor apagado. Pude discernir sua forma na matéria densa do escuro, pude sentir a sombra do vento que sua passagem produziu, pude ouvir o amortecer dos seus passos. O resíduo de uma criança que nunca existiu, a esperança antropomorfa de uma brincadeira. Na invisibilidade, estiquei o braço e lhe ofereci a mão, num convite. Por quantos centímetros seus dedos esquivaram-se dos meus?

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