terça-feira, julho 05, 2005

Borrow somebody's dreams 'till tomorrow 4

Eram oito pessoas na pequena casa onde o corpo dele esperava a hora de virar chão. Três mulheres choradeiras, a viúva assombreada pelo véu preto e quatro filhos incriados. Quatro velas grossas em volta do caixão enchiam o ar do cheiro lamuriento da cera derretida, porque as flores colhidas na manhã recém-parida já haviam fechado os seus frascos. A cidadezinha fazia fila para honrar o novo morto, que perecera com uma semente de chumbo plantada no coração, sem que se soubesse quem fora o lavrador. Os condolentes seguiam pela lateral da casa e, da janela, lançavam suas bênçãos e pesares, partindo em seguida para seus próprios restos de vida.

O protocolo fúnebre foi quebrado pela Velha, que adentrou o recinto reservado à família e às carpideiras. Ela tinha a fama de se mover no plano de dentro das coisas, moldá-las por suas hastes não vistas, e o presente, que não se sabia de deus ou do diabo, afastava e encantava os vizinhos, o receio recomendando a prudência e a distância. Assim, imperturbada, ela avançou até o morto. E ninguém viu retesarem-se as cordas invisíveis que enchiam a sala, quando ela debruçou-se sobre o rosto do homem vazio, soprando segredos no seu ouvido, depositou-lhe uma moeda sobre o selo dos lábios e, no pé direito, introduziu um alfinete na carne que não mais sangrava. E ninguém desfez-lhe o artifício depois que ela voltou para o seu isolamento.

Foi tarde da noite do segundo dia que surgiu o assassino. Os olhos vermelhos e aumentados, a boca aberta, as roupas imundas. Atravessou a cidade, sobressaltado e espantado das sombras imóveis das casas, e jogou-se dentro da cadeia, despejando em palavras tudo o que tinha por dentro. Disse que matara o homem à traição, desarmado e encurralado, por uma briga de terra a mais ou terra a menos, que lançara-se no mundo para fugir à pena e que já avançara um trecho seguro quando a noite trouxe as sombras. E com elas, as vozes de homens vigilantes, passos de encalço cercando-o entre o matagal. E por uma madrugada inteira os perseguidores o acompanharam de perto, invisíveis mesmo em campo aberto sob a lua cheia. Nem o dia trouxe a paz, nem calou as falas confundidas, nem interrompeu os passos, nem mostrou-lhes os rostos. Não chegavam, apenas o seguiam e arrodeavam. Acuado pelo que não via e exausto pelo peso carregado, o matador decidiu ser protegido pela verdade, seguido de perto também no seu caminho de volta e confissão.

E foi na madrugada calada, com o assassino dormindo em paz em sua cela, que os insones nas janelas puderam ouvir os passos pesados e sem donos de vinte ou trinta homens, numa lenta marcha de retorno.

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