quinta-feira, junho 16, 2005

Desta última manhã

Se um vento batesse minhas portas e janelas, se o dia lavasse meus corredores com uma luz tão intensa, que marcaria as cores de meus quadros e rodapés, e estes iluminassem a noite, na ausência das lâmpadas, se a graça de crianças numa corrida de bicicletas ventasse nas minhas barbas e lacrimejasse os meus olhos, não de um choro de quem ora para um lugar vazio, mas cobrindo minhas pupilas de um brilho de chegada, se o som de rádios AM, vencendo vidraças e fugindo das cozinhas nesta última manhã, entremeasse os cabelos que não tenho, convidando meu suspiro para dançar.

Como um dia pinçado das fileiras acumuladas nas minhas prateleiras, um dia limpo e vivo em seu brilho, lustrado e posto sobre a mesa para arder na noite, na madrugada fechada, de quietude morta, onde nenhum som pula os muros do quintal. Os grilos calam quando a visita indesejada se aproxima. Se eu compusesse novamente a pureza que criei e lancei ao céu sem volta, se pudesse outra vez preencher de barro a beleza dessa estátua inexistente, esculpindo-a num processo inverso, não me doeria tanto a madeira maciça desta porta batida às minhas costas e o silêncio que arranha o seu espelho como um cão apanhado de frio.

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