terça-feira, junho 28, 2005

A rede do trapezista

Os olhos de meu pai eram pistas de adivinhação. Eram como o mar que se incha do escuro do céu antes da chuva. De verdes, tornavam-se azuis na euforia e fechavam-se num cinza inconfidente quando a vida lhe comia por dentro. Eram a sua concessão máxima para falar-nos dos lagos que lhe transbordavam. Um dia, o vento que não soprava da sua boca e o rio que lhe corria subterrâneo explodiram-lhe o coração e o estômago. Meu pai pequeno, diante do mundo e sua bocarra, secou para dentro, engolindo lembranças, formigas carnívoras urdindo cavernas nas suas entranhas. Já era do outro mundo antes mesmo de deixar este. Já estava no outro lado, antes de pisar a estrada.

Um sonho bom é sonhar-lhe os olhos azuis, o sorriso que era a rede sob o meu trapézio, o vento assanhando-lhe os cabelos que não herdei. Herdei, sim, os seus lagos e suas ventanias e com eles enfeito a paisagem do nosso reencontro. No dia em que sua vista refletirá novamente uma redoma sem nuvens. Meu pai gigante como eu me lembro, as mãos novamente a me levantarem do chão. Nós dois sonhados por um terceiro, vivos pela mesma saudade.

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