sexta-feira, maio 20, 2005

A sentinela no exílio

Torne-se o retrato de um momento, uma pintura espatulada, perfeita de cores tão diversas. Pendure-se como um quadro - ou uma janela - debruçado sobre a minha cama, abençoando meu sono por todas as noites. Não me olhando diretamente, como o pudor ou o segredo a impedem, mas desviando o olhar para um ponto inexistente, hesitando a cada frase, deixando escapar palavras em voz baixa, para depois escondê-las. Para onde se varre o que já foi dito?

Alimento-me das palavras que você não quis dizer, do que transbordou da sua prudência. Eu, que sobrevivo três vidas antes de cada segundo, recolho esses transbordos como os fios e sonhos que lhe caem da cabeça, como as lágrimas que lhe vertem para dentro. Eu sou o senhor do que você guarda, de suas muralhas erguidas em pedra intransponível, dos seus portões levadiços. Eu habito o fosso em torno de você. Uma sentinela exilada, um dragão domesticado.

Faça-se o crucifixo da minha hora morta, velando-me e amaldiçoando. Transforme-se na imagem gravada a escopo no fundo do meu olho, na ponta dos meus dedos, ventando entre os pelos do meu nariz. Um fantasma intangível para sempre ser olhado.

E eu percorrerei os dias sempre armado da minha estupefação. Uma criança guiada pela mão de quem não está mais à frente.

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