domingo, agosto 14, 2005

O quarto escuro do amor dormido

O assassino entra no quarto guardando todos os ruídos nos bolsos, conservando o sono da mulher deitada. À beira da cama, ele estaca e a observa por uns instantes, tentando adivinhar-lhe os sonhos. Mas ela os guarda sob o travesseiro e ele se ressente do seu silêncio. De semblante cerrado, ele curva-se sobre a silhueta guardada sob o lençol. E faz o que veio fazer. / Ou era um quarto que não veria a manhã seguinte. Quadros, luminárias, cômoda, cortinas de olhos fechados, o teto que guardou um grito. Era um quarto com a mão sobre a boca quando o homem ergueu a mão sobre a cabeça, faca em preparo, e imaginou interromper um sonho sobre crianças e aviões. / Ou os olhos dele já eram amigos do escuro quando entrou no quarto, que já conhecia. Lembrou-se do cheiro da mulher deitada antes de senti-lo. Observou o rosto, única parte do corpo à mostra, mesmo que parcialmente. Um quarto cheio de um frio nervoso. Pensou em beijá-la, mas não queira que acordasse. Assim, em silêncio, fez uma oração que desviou-se numa declaração de amor mudo. Tentou encontrar-se dentro daquelas pálpebras que mal enxergava. Ao certificar-se de sua ausência, buscou a faca guardada em seu casaco. A lâmina virgem, perfeita, guardada para um ato de bênção. Levantou-a e, depois de uma hesitação imperceptível testou a insuficiente resistência da carne do peito do seu amor. / Ou o pretume dentro do quarto não lhe deixa perceber meus olhos minimamente abertos. Mas eu consigo vê-lo e completo com a lembrança os traços que o escuro apaga do seu rosto. Internamente, eu zombo do seu passo revestido de um cuidado caricatural. Envaideço-me com a sua contemplação, e lhe dedico uma ternura que não sentia há tempos. O seu silêncio me explica o que irá fazer, mas eu não movo nenhum músculo. Estou decidida a ver tudo, a acompanhá-lo até o fim, a receber sua raiva como um carinho. Mas, quando o metal em sua mão deixa refletir um brilho tímido, me escondo atrás das pálpebras e prendo nos pulmões o ar que me sairá pelo peito. / Ou ela é o rumor de uma corrente que me corre dentro, uma agonia latejada, o resíduo amargo da comida que me mantém vivo. Ela é o gatiho e o empecilho da minha lágrima. Ela é o óleo que me escorre da testa, a planta escondida no ovo da morte, a mordida de um câncer. Mata-me ser tão pleno dela e não habitar-lhe nem como uma imagem gasta na calha da memória. Ela é a causa da minha morte. Eu serei a dela. / Ou cinco beijos de metal no lado de dentro do seu coração, sendo o último permanente. Faca, tecido e carne unidos. Quem lhes discerniria um do outro?

Sem comentários: