segunda-feira, março 31, 2008

A data na lápide

Há uma rocha depositada sobre o meu túmulo. Tão imensa, que encobre meu nome na lápide, e, mais importante, a data do meu passamento. Sinto sentada sobre o meu peito a sua imobilidade obesa, poço escuro do meu fôlego. Ela impede que o corpo que eu serei contrarie as caldas do rio, que eu inverta o caminho, que minha mão decomposta derrote verme, solo e raízes, e erga-se garra sobre a grama.

Há um rosto que me encara, um centímetro fora do meu campo de visão. Tem feições em pedra e ira, olhos que espetam minha têmpora e que nunca se permitem piscar. Tem a boca talhada em agouro de sorriso, um sorriso que não se ergue pelas pontas dos lábios, que não contagia bochechas ou sobrancelhas, que celebra profecias trágicas. Ele impede que a luz difusa complete o meu rosto. Sempre a luz direta, sempre um lado em sombra. Ele impede que meu sorriso retenha um chiado lamentoso, que minha alegria ande livre de lodos nos contornos, que eu desapareça soluços de minhas gargalhadas.

Há uma cidade que nunca muda nos meus sonhos. Ela é plena de ruas desertas, fachadas cerradas de lojas, ladeiras ingalgáveis que se erguem para o céu. Ela tem homens que moram em buracos, cães que ladram invisíveis em jardins escuros, procissões de saudades dos mortos, estradas que caem no rio, praias azuis no meio do lixo. Ela impede que eu me sinta acolhido em qualquer lugar, que eu não me descubra estrangeiro, mesmo na casa de meus pais. Ela impede que eu sonhe em ganhar o mundo em viagens. Pois a minha cidade não tem rotas de fuga. Pois há um lugar de onde eu venho, de onde nunca saí, e aonde vocês não podem nunca chegar.

quinta-feira, março 06, 2008

Cama de pregos

O céu aberto me expande.
Estica meus braços e pernas, cardinais, que se firmam em horizontes,
tomam-se por olhos.

O céu aberto me anela,
rarefeito como uma gota de sangue em um copo,
que perde seu rubor
para completar a água com o gosto metálico da morte.

O céu aberto me suspende,
alça-me pelos ombros da camisa como um sorriso,
devolve-me o vazio a que meus pés pertencem.

O céu aberto não me contém, cabe em mim como todos os dias dos meus antepassados, as veias saltadas da sua labuta, os cacos cortantes da sua loucura, o rio perene da sua tristeza, a cama de pregos da sua beleza.