sexta-feira, novembro 25, 2005

O pequeno homem que não estava lá 2

Quem me viu chegar voando deixou as orações resvalarem baixinho nos lábios e deu abraço ao vento para, quem sabe, voar também. Quem me viu descer, mirando a terra, prendeu o fôlego, com medo que o chão me confrontasse, hostil. Quem me viu pousar sem ferir o solo lembrou de cantigas de faz tempo, dessas que fazem crianças levitarem. Quem me viu olhar, curioso, o redor lembrou de livros que falavam das plagas de onde eu vim. Quem me ouviu falar certificou-se de que eu usava sua língua como quem veste uma roupa nova e sai para o passeio. Quem se aproximou e viu o reflexo de tudo lavar os meus olhos entendeu que o mundo mal podia esperar para por as mãos sobre mim. Quem viu a gravidade me destruir, como deus devora, faminto, uma estrela, ainda jura que eu sorria.

Longe da árvore de natal

Se você calar uma dor no fundo, eu a tomarei como meu tumor de estimação. Se você trouxer do céu cheio de nuvens mais uns tantos jeitos de chamar o meu abraço, eu lhe darei as portas, as janelas e o pátio da minha casa ensolarada. Se você sentir frio durante a noite, eu aumentarei o meu calor para dividi-lo. Se você falar durante o sonho, eu colecionarei suas histórias para lhe impressionar na vigília. E trarei de volta os seus reinos submersos, cursos dos rios que desaguaram no teu travesseiro. Eu desenharei mapas para que você me encontre em novas moradas, domarei éguas noturnas para seu passeio tranquilo. Se você encostar seu maxilar no meu pescoço, eu terei ido e voltado sobre aquela ponte que eu nunca atravessei, leve das assombrações que moravam do outro lado. Eu, o mais operoso dos meus fantasmas, lograrei meu primeiro sono em casa, como um lápis respira antes de desenhar um poema numa folha de papel.

terça-feira, novembro 15, 2005

À deriva no tempo

O escuro está em todo lugar, como água infiltrando-se nas fundações de uma casa antiga construída sobre o pântano, inchando o barro dos tijolos, corroendo vergalhões, transformando o sólido cimento em areia fofa. Há coisas - como chamar o que precedeu os nomes? - que sobrevivem no escuro. Elas escutam e celebram no silêncio inchado, desde o dia em que deus se entregou a um sono cerrado e o mundo a um vazio que tenta se preencher. Nós acendemos fogueiras, janelas e cidades, mas mal arranhamos a noite que nos envolve. Eles que a habitam se comprazem dos nossos passos tateados no que não vemos. Lançam, de longe, gargalhadas abafadas, conversam em círculos ao nosso redor, resvalam sutilmente a pele de nossos braços e nucas, cobrem-nos do seu hálito. Nós dançamos, rezamos e gritamos para afastá-los. Eles se amontoam numa arquibancada posta à nossa frente. Sabem que marchamos invariavelmente para os seus braços, a despeito de qual direção miremos. Esticam lábios e tendões. Lambem nos beiços a saudade do sangue.

quinta-feira, novembro 03, 2005

O pequeno homem que não estava lá.

Quando minha imagem falhar, como uma lanterna lambendo o tacho de sua bateria, mantenha os olhos em mim para que eu não me vá. Quando eu explodir em dor, como se cravasse um espinho na carne entre os dentes, lave o tempo à minha volta com as costas da mão da sua calma. Quando a minha gravidade capturar a luz ao redor e eu inchar do meu próprio silêncio, duas palavras suas me esvaziem em gargalhada. Quando eu desenhar um muro em volta do meu próprio marco, arme de paciência vegetal o ar que range entre as falanges do meu punho cerrado. Quando eu cansar de tanto chão e minha boca transbordar de tanta terra, um abraço seu me guie, levadiço, para morar entre os sóis. Quando eu arder na reentrada, um risco luminoso que grita, acompanhe minha trajetória em compaixão, até que eu me apague fátuo. Depois feche os olhos e faça um pedido em minha intenção.