terça-feira, abril 26, 2005

Uma fenda

Eu caminho pelas ruínas de uma noite perdurada, um escuro que não se deixou raiar. Uma madrugada que se debruçou sobre a cidade – e suas lâmpadas – e a ela aferrou-se com os braços e pernas fortes de uma mulher amorosa. Uma noite sem gente, sem vento, sem estrelas. Sem termo. Ecoando sobre si mesmo, um último grito pode ser escutado, ou imaginado. O fim num gemido que não saiu da própria dor. Eu despertei atrasado, acordei um segundo depois de o tempo passar. Vi-me no rascunho do mundo, no resquício de tudo, no lado de fora da moldura de uma fotografia. Eu cheguei aqui dando um passo para trás.

Como num poema antigo, ando pelas ruas, acendendo fósforos para ler os seus nomes. Como o zelador do ocaso, vou fechando a portas que restaram abertas. Produzindo luz para ver as sombras. Investigo todas as janelas, frestas, esquinas. Procuro um fantasma para me convencer vivo.

quinta-feira, abril 21, 2005

O mundo arrodeou

Eu, que nado mal entre os acontecimentos, que bóio desavisado na maré das coisas. Ocupado em ocultar nuvens escuras atrás de um céu azul, fui me engajando em não ouvir um murmúrio crescente que se avolumava às minhas costas. Era um rumor de água espumada, de pedras assaltadas, de encontros de espadas líquidas. Era um tropel da cor do limo, o som de milhares de cascos lançados numa onda. E eu, minha linda, quando o chão voltou a dar piruetas, fui colhido nessa vaga, levado para o fundo, o ar contado nos pulmões. Eu fui submerso pela rebentação dos tempos.

domingo, abril 17, 2005

Tratado do mundo inverso

Minha casa repousa dentro das paredes da vista. É ali onde transito, por trás dos quadros, interruptores e espelhos. Sou eu que posso esticar os segundos, segurando-os pelas orelhas, como crianças colhidas em faltas. Arranco da noite fotografias do seu lado avesso, do mar desapercebido que inunda as ruas, transformando avenidas em correntes. Adivinho histórias repetidas nos rostos transeuntes. Atos num palco, sinais num sonho.

Por isso, não registrei seu nome antes da terceira vez que ela o repetiu. Reconheci nele todos os nomes - no seu rosto, todas as outras faces - que nadavam no mar indiviso que afogava uma cidade erguida sobre falésias.

quarta-feira, abril 13, 2005

A coleção

Encostava o peito no gradil da varanda e inspirava a madrugada da cidade, até plenos pulmões. O ar escapava-lhe aos poucos, enquanto pensava cada uma de suas desgraças pessoais. Colecionava-as, preenchendo uma secreta sala de troféus: o pai encantado, o amor danado, o cotidiano errado. Orgulhava-se delas, cultivando-as em jardins de cores foscas, flores triunfando sobre o chão. Nelas adivinhava um fadário superior, um sofrimento pleno de realizações, a prova de um destino especial. Sorvia as luzes estendidas num tapete vivo e soprava sobre as ruas uma jactante seleção de fracassos. Como alguém que estende, à janela das núpcias, um alvo lençol manchado.

domingo, abril 10, 2005

A vida na caixa de fósforos

Duas irmãs habitam uma casa morta, de pequenas e ovais janelas vivas. Ambas lamentam a ausência de portas, costurando, cada uma, bordados longos como vidas inteiras emendadas. E bordam histórias em desenhos, em alguns dos quais você colecionaria interjeições de espanto, ao sentir-se frente a um espelho claro. Vem ver, através da janela, como elas intoleram-se, lançando reciprocamente originais maldições, e alimentam-se repetidamente do coração da companheira. Veja também como perdoam-se após cada mordida, num incondicional amor fraterno.

quarta-feira, abril 06, 2005

Cadeia

Há peixes que nadam no fluxo - ou no leito estático? - do tempo. Sim, porque o tempo tem nós, reentrâncias, locas. E, se movimenta-se, o faz em torno do seu próprio marco, como alguém que caminha pelas paredes de um quarto sem janelas.

São esses os mesmos peixes que trafegam no meu - no seu? - sangue, que, por um tobogã de veias, buscam o coração, e lá esperam para serem novamente alçados, por uma pulsação ordinária, de volta ao vagar sem objetivo. Eles compõem o líquido que é o silêncio do corpo. Até o dia em que a máquina se despede do seu labor.

O tempo dá voltas em si mesmo, numa única pulsação infinitamente estensível, repetindo nomes, rostos, erros. O tempo deixa um rastro no seu próprio sulco, induzindo-nos a pensar que os fatos decorrem de outros. Um segundo como conseqüência do anterior. Como se o trespasse de uma lâmina brilhante pudesse, realmente, interromper o ofício de um coração, espalhando o seu silêncio pelo chão.

segunda-feira, abril 04, 2005

o resto em branco

Mas o meu passo é lento e minha companhia mais freqüente é o ar atribulado pela ausência dos que seguiram adiante. Como a presença residual de um dedo ou um braço arrancados, de uma noite sem dormir, de nove minutos inexplicáveis suprimidos da passagem do tempo. Ou como a mulher que se vê uma tarde no jardim e que na verdade não está lá.