sexta-feira, julho 29, 2005

A mão sobre a boca

O meu silêncio é a mancha que turva a água, é a arma deposta aos pés, à guisa de semente. Meu silêncio é uma tosse engolida, é a tampa da garganta, é o desviado dos passos na boca do beco escuro. Meu silêncio é o de um analfabeto perante o muro alto de uma palavra, confundindo-se sombra, esquecendo-se gente. É um osso exposto, saltado da carne como um animal subterrâneo rompe o lacre da terra. Meu silêncio se alardeia, estandarte de lágrima, arde na vista como o vermelho no preto. Ao esconder-se, propaga-se, propõe adivinhações, levanta sombrancelhas e prega olhares. Meu silêncio é um farol, a dor que afugenta os barcos.

terça-feira, julho 26, 2005

Inveja de todos

Ficaram meus dedos tateando o ar, a memória como sangue embaixo das unhas. Eu sou o homem que matou a criança. Um bebê lindo, saudável, inveja de todos e destinado, desde que dado à luz, à morte prematura por um mal inato. Mas a misericórdia não é alívio. Eu sou o homem que fez da beleza ruína, eu que fechei a janela ainda no sono das tardes. Eu que levo a noite nos bolsos como bolas de gude, para espalhá-las nas ruas, derrubando os cavalos. Eu que escarneço do amor a deus, por duvidar da sua reciprocidade, por não saber se minha existência lhe toca, ou concerne. Eu que sempre imaginei os anjos nunca estive entre eles. Eu, prodigioso criador de fantasmas, acrescento mais esse aos que fazem fila na porta da minha casa destruída.

segunda-feira, julho 18, 2005

Entre o pulmão e a boca

Num quarto selado de escuro, o homem abraçado às pernas dobradas renova o grito, mas a voz lhe sumiu há anos. Quem vai escalar as palavras mais imponentes e fincar-lhes bandeiras aos cumes? Quem vai atravessar o tempo em saltos sobre as pedras em movimento? Quem vai confidenciar à mulher, que de colchão tornou-se clava, as lascas em espiral que sobraram da verdade talhada, o labirinto da noite entre os mortos? Quem, abraçado aos anos num quarto fechado, encontrará novamente a ponte do som e se fazer escutado? Ninguém. Pois o escuro tem o peso de uma frase em punhal e afoga, como a água plenificando o caminho entre a boca e o pulmão. À porta ninguém veio, nem virá. O quarto é um caminho que não saiu do lugar, é o tiro de largada que não explodiu. O homem - os olhos abertos? - sonha consigo. No sonho, é uma criança de olhos fechados, acariciando a fronte de uma fera em posição de ataque. Morde o lábio até o sangue, sem conseguir alertar a si mesmo sobre o perigo.

quarta-feira, julho 13, 2005

De onde se via a outra margem

Havia um muro - não de se pegar, mas havia - que não cortava o vento nem a vista, mas parava as mãos, entortava os caminhos, guilhotinava as palavras. E cresceu para lago, onde os pés testavam covardes a mordida do frio e cancelavam a travessia. E nem aves nem insetos vinham beber no espelho, nem o sol lavava a multidão das pequenas ondas. E as mãos confirmavam a aspereza da areia da margem, e espalhavam os grãos, semeando chão em si mesmo. E os olhos traíam o corpo e, no menor dos descuidos, já estavam além da água, brincando na paisagem impossível. E cresceu para horizonte, que é um muro entre duas miragens. E a imaginação, esse monstro de mil bocas, abandonava os olhos e o corpo, lançando-se além da linha da vista, retornando relatórios que enchiam de garras e sombras a obesidade pronunciada de um vão intransponível.

terça-feira, julho 12, 2005

Dentro e fora

Eu acordava no sonho com o barulho angustiado de um morcego, ou um pássaro da noite, debatendo-se contra a janela fechada do meu quarto. Asas e garras reclamando o vidro, chorando o frio da noite lá fora, um vulto agitado, multiplicado pelo movimento, mal delimitado pela fraca luz externa. Eu levantava, o passo frouxo, até o interruptor pretendendo empurrar com a claridade o animal de volta a seu lar feito de madrugada. Mas a lâmpada acesa desenhou, através do vidro, o rosto e as palmas das mãos de uma criança morta.

Eu acordo com um trem atravessando as minhas veias e a boca num travo. Hesito em iluminar o quarto, mas, quando o faço, a janela vazia convence-me do sonho. Pensando em matar a sede, abro a porta a tempo de ver o velho no final do corredor. Ele volta a cabeça para mim e me convoca, com o dedo indicador, entrando no último quarto. Eu recuso-me a segui-lo e, em vão, tento acordar da vigília.

terça-feira, julho 05, 2005

Borrow somebody's dreams 'till tomorrow 4

Eram oito pessoas na pequena casa onde o corpo dele esperava a hora de virar chão. Três mulheres choradeiras, a viúva assombreada pelo véu preto e quatro filhos incriados. Quatro velas grossas em volta do caixão enchiam o ar do cheiro lamuriento da cera derretida, porque as flores colhidas na manhã recém-parida já haviam fechado os seus frascos. A cidadezinha fazia fila para honrar o novo morto, que perecera com uma semente de chumbo plantada no coração, sem que se soubesse quem fora o lavrador. Os condolentes seguiam pela lateral da casa e, da janela, lançavam suas bênçãos e pesares, partindo em seguida para seus próprios restos de vida.

O protocolo fúnebre foi quebrado pela Velha, que adentrou o recinto reservado à família e às carpideiras. Ela tinha a fama de se mover no plano de dentro das coisas, moldá-las por suas hastes não vistas, e o presente, que não se sabia de deus ou do diabo, afastava e encantava os vizinhos, o receio recomendando a prudência e a distância. Assim, imperturbada, ela avançou até o morto. E ninguém viu retesarem-se as cordas invisíveis que enchiam a sala, quando ela debruçou-se sobre o rosto do homem vazio, soprando segredos no seu ouvido, depositou-lhe uma moeda sobre o selo dos lábios e, no pé direito, introduziu um alfinete na carne que não mais sangrava. E ninguém desfez-lhe o artifício depois que ela voltou para o seu isolamento.

Foi tarde da noite do segundo dia que surgiu o assassino. Os olhos vermelhos e aumentados, a boca aberta, as roupas imundas. Atravessou a cidade, sobressaltado e espantado das sombras imóveis das casas, e jogou-se dentro da cadeia, despejando em palavras tudo o que tinha por dentro. Disse que matara o homem à traição, desarmado e encurralado, por uma briga de terra a mais ou terra a menos, que lançara-se no mundo para fugir à pena e que já avançara um trecho seguro quando a noite trouxe as sombras. E com elas, as vozes de homens vigilantes, passos de encalço cercando-o entre o matagal. E por uma madrugada inteira os perseguidores o acompanharam de perto, invisíveis mesmo em campo aberto sob a lua cheia. Nem o dia trouxe a paz, nem calou as falas confundidas, nem interrompeu os passos, nem mostrou-lhes os rostos. Não chegavam, apenas o seguiam e arrodeavam. Acuado pelo que não via e exausto pelo peso carregado, o matador decidiu ser protegido pela verdade, seguido de perto também no seu caminho de volta e confissão.

E foi na madrugada calada, com o assassino dormindo em paz em sua cela, que os insones nas janelas puderam ouvir os passos pesados e sem donos de vinte ou trinta homens, numa lenta marcha de retorno.

domingo, julho 03, 2005

Bem junto com a rua o mundo acabava

Eu, na janela, ouvindo a conversa do vento e desfiando a vista. Era um bairro suspirando por sua própria invenção. E foi o prédio concretado do costume que me fez querer você à mão, ter novamente com quem dividir os meus olhos improváveis. Dizer veja, numa poça d’água, um raio de luz tornar-se uma dançarina a girar sobre os pés, desfazendo-se do próprio peso, veja um coqueiro fazer reverências ao vento, as nuvens acelerarem o passo da tarde, um gato equilibrar-se entre a guerra de dois quintais, veja um horizonte contar a história do campo que esconde, o plano de deus terminar em ponto e vírgula e o mundo ignorante de seu próprio fim. Uma tarde que se perdeu em mim, e eu perdido nela, por ser o único confidente do seu caminho coberto. Para quem mais eu mostraria os pássaros voando em ritmo de valsa: duas ascenções e uma queda? A quem eu sugeriria música de suas asas?